Crónica de Paula Ferreira: Dormir na palha com o menino

(Fotografia: Pedro Granadeiro/GI)
Os natais da infância ficarão sempre impressos na memória como os mais especiais, num tempo em que o Pai Natal nem sequer existia.

Olho para trás, um dia frio e luminoso atravessa-me a memória da infância. No passado distante houve, com certeza, dias de chuva, tempestades, céus de chumbo, ciclones inclementes, árvores derrubadas. Mas nenhuma lembrança guardo de dias cinzentos. O Natal é um dia frio, cheio de sol. E é também o dia de se dormir na palha, em comunidade, numa cozinha quente, como se se estivesse em Belém, há mais ou menos dois mil anos, à espera do nascimento de Jesus.

Sim, o Natal era o dia de Jesus nascer. O publicitário Pai Natal das barbas brancas, nesse tempo, nem sequer existia. Os presentes também não, ou pelo menos não eram presentes como os de hoje. Talvez fosse altura de receber um casaco mais quente, ou umas botas… Isso foi há muito, num tempo sem 13.º mês, a televisão abria às sete da tarde, os centros comerciais estavam a despontar e as idas ao Porto, ver as montras, era coisa rara.

Do mundo dos brinquedos, recordo as bonecas de plástico colocadas estrategicamente na montra da “Maria Sapateira”, tábuas de passar a ferro de folha em miniatura: as meninas brincavam com bonecas e utensílios em miniatura, seriam elas no futuro as donas de casa, e os brinquedos instrumentos de aprendizagem.

No lugar onde ainda moro, havia até uma retrosaria, hoje nem um café de porta aberta para fixar a memória, como se abundância do Natal fosse proporcionalmente inversa ao viver das pessoas e das terras que habitam.

Era o dia de dormir na palha, guardada desde o verão, bem seca e aromática, para a mágica noite de consoada. Mas eu nunca dormi na palha. Os meus desejos não foram ouvidos. Insisti, insisti para viver na minha casa essa tradição vila-condense. Em vão. Difícil convencer a minha mãe de como seria maravilhoso trocar as camas pelo chão da cozinha, como faziam os nossos vizinhos, do outro lado da rua.
Só muito mais tarde, já adulta, percebi a singularidade do gesto. Em trabalho, para uma revista, fiz reportagem em muitas festas populares: na sua preparação, encontrei na obra de Ernesto Veiga de Oliveira referência à singular celebração natalícia. Segundo o antropólogo, acontecia apenas no concelho de Vila do Conde. “Agarrava-se um colmeiro de palha, espalhava-se esta no chão. No meio da cozinha, cobria-se com mantas e ali se dormia toda a noite, até à missa do dia seguinte, de manhã: a palha ficava assim durante todo o dia 25 e só se retirava à noite”. E desta forma hiper-realista se celebrava o nascimento do menino.

Da tradição de dormir na palha na noite da consoada resta o relato de Veiga de Oliveira, inserto no livro Festividades Cíclicas em Portugal. Hoje o Natal na minha terra nada tem de peculiar: é feito de pistas de gelo, e centenas de pais natais, que chegam com as prendas muito antes do dia 25, quebrando qualquer réstia de magia. Um Natal igual a tantos outros, instalados, por empreitada, nas principais praças de norte a sul do país.




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