Crónica de Luísa Marinho: sonhos pandémicos

Vieram fora de tempo estes sonhos, quando já se começa a ver um fim para estes dolorosos meses. Mas talvez seja por isso, pela ânsia de que, não tarde, tudo pareça um sonho mau.

É quase sempre de noite e na rua – centenas de pessoas acumulam-se em frente a bares, no meio das ruas, em filas para as mais diversas lojas. Às vezes, é uma festa repleta de gente alcoolizada aos saltos, dançando ao som da música e mesmo quando não há música. Uma coisa comum entre todos os cenários: quase ninguém usa máscara de proteção nem se preocupa com distanciamento físico. Bem pelo contrário, não faltam abraços e beijos, brindes de entornar o copo.

Outra coisa em comum é que em vez de serem recordações mais ou menos distantes de festas e noites de fim de semana, estas imagens surgem-me através de sonhos. E são tão frequentes, quase diários, que já lhes dei um nome: “sonhos pandémicos”. Ou seria melhor pesadelos, porque em vez de me remeterem para tempos de boémia e hedonismo, cansaço prazeroso, estão irremediavelmente ligados ao presente. É que no sonho só consigo pensar – o que esta gente está a fazer??? – não tarda, há outro surto. A minha máscara, onde pus a minha máscara? Preciso de uma máscara. Tento entrar numa loja qualquer para comprar uma, mas desisto devido à quantidade de pessoas que se acumulam lá dentro. Então, afasto-me da multidão que me parece enlouquecida e acordo a pensar: outra noite, outro sonho pandémico.

Parecem ter vindo um pouco fora de tempo estes sonhos. Quando já se começa a ver, aos poucos, um fim para estes dolorosos meses. Mas talvez seja por isso, pela ânsia de que, não tarde, tudo pareça um sonho mau – caso os sonhos pudessem deixar tantas marcas na realidade. A vontade, ainda permeada pelo medo, de regressar a hábitos antigos e concretizar desejos por cumprir. Há as viagens que quero fazer: o amor que já não vejo há demasiados meses, os amigos do outro lado da fronteira que não posso cruzar. E há os almoços em família, os jantares com a casa cheia de amigos, os festivais de música para passar o verão.

Entretanto, a longa espera criou novos hábitos e passatempos. Alguns, não vou largar tão cedo. Como os passeios pelas traseiras do meu prédio. Numa rua que parece de uma aldeia esquecida, tento ignorar o som dos carros que lá em baixo aceleram na autoestrada. Foco-me no canto dos pássaros. Ligo o gravador para os identificar.

Não há nada de exótico ou exuberante: os melros do costume, os hiperativos pardais, algumas toutinegras-de-barrete e os harmoniosos estorninhos-pretos. Indiferentes às ansiedades humanas, seguem com os seus cantos que tento catalogar como uma naturalista sem pretensões. Talvez em breve, os sonhos pandémicos deem lugar a sonhos mais aéreos, leves, coloridos, como reflexos de um catálogo ornitológico.




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