Crónica de Luísa Marinho: Se chove, deixa chover

Peregrinos a caminho de Santiago, em Santiago de Compostela. (Fotografia de Leonel de Castro/GI)
A minha relação com a chuva não será muito diferente da de outros portuenses, nem da de minhotos ou de galegos. E foram os galegos que me ensinaram o ditado.

Era já final da tarde quando chegámos a Santiago de Compostela. Depois de uma viagem de carro iniciada há uns dias, que nos tinha levado do sul de Portugal para a Galiza, celebrámos a chegada com cervejas e tapas num café do centro histórico. Naquele dia quente e cinzento, tínhamos já percorrido alguns quilómetros. Passáramos por Vigo, para visitar amigos, e seguimos viagem. Sem hostel reservado e com a chuva que começara a cair, aquele café foi um ponto de abrigo. Abrimos o wifi e após alguma persistência, encontrámos sítio onde pernoitar.

Depois do check in feito e de um aconchegante caldo galego no estômago, fomos experimentar a vida noturna compostelana. Seria dia da semana, talvez segunda ou terça, pois os espaços fechavam cedo e pouca gente circulava nas ruas. Mas eu e os meus amigos estávamos de férias e não queríamos terminar já a noite. O objetivo de encontrar um sítio para tomar um copo levou-nos a um périplo pela cidade, completamente despreparados. A chuva era intensa. Não desistimos. Nem valia a pena abrigarmo-nos; mais molhados não podíamos ficar. Pelo caminho, um rapaz indicou-nos uma discoteca, onde chegámos largos minutos depois. Torcemos o nariz à música, aos neóns azuis na parede, à casa quase vazia. Mas depois de um gin tónico bem servido, sentimos a alegria de missão cumprida.

Desde criança que as gabardinas e os guarda-chuvas fazem parte da indumentária outono/inverno.

Já de madrugada, no quarto de hotel, secámos roupas e sapatos com o secador de cabelo. A primeira coisa que fizemos no dia seguinte foi comprar um guarda-chuva (e alguns, um par de sapatos novos). Naquela noite, debaixo da chuva intensa, lembrei-me da primeira vez que vi o clássico “Singin’ in the rain”. Fora muitos anos antes, durante as férias de verão em família, em Vigo. Numa tarde chuvosa, liguei o televisor a preto e branco que passava o musical. Encantou-me a cena em que Gene Kelly, depois de beijar na boca a sua amada, vai pela rua a cantar alegremente debaixo de chuva intensa – só quando revi o filme, anos depois, me apercebi que este era a cores…

Mas voltando a Compostela. No verão passado, desta vez num dia quente e soalheiro, passeava numa rua turística quando uma série de postais coloridos com dizeres galegos na montra de uma loja me chamou a atenção. Um deles, com guarda-chuvas desenhados, dizia “se chove, deixa chover”. Remeteu-me de imediato para aquela noite tantos anos antes. Soube, depois, que a frase faz parte do cancioneiro tradicional galego e que é cantada pelos Treixadura (“Se chove, deixa chover/Se orballa, deixa orballare/Por máis que chova e vente/De ti non me hei de apartare”).

A minha relação com a chuva não será muito diferente da de outros portuenses (nem da de minhotos e galegos). Desde criança que as gabardinas e guarda-chuvas fazem parte da indumentária outono/inverno. Não tenho “medo” da chuva, do possível desconforto que traz. Agradam-me as primeiras bátegas após muitos dias de sol e o petricor que aromatiza o ar. E como nunca consigo conservar um guarda-chuva por mais de um par de dias, sei que não vou passar as estações frias sem apanhar várias “molhas”. Se chove, deixa chover, penso sempre que acordo num dia cinzento. E que não falte chuva no próximo inverno. Pois, já diz a tradição, “inverno chuvoso, verão abundoso”.




Outros Artigos





Outros Conteúdos GMG





Send this to friend