Crónica de Luísa Marinho: Pontos de referência

Antes de me mudar do Porto para a periferia de uma cidade vizinha, nunca tinha tido, como agora, dificuldade em dar pontos de referência a quem queria chegar a minha casa.

Quando uma destas noites um condutor de TVDE me pediu um ponto de referência para a minha casa, fiquei à toa. Não estava preparada para a pergunta – desnecessária porque o GPS indica o caminho – e nada me veio à memória. Ainda pensei em dizer que não havia necessidade de dar um ponto de referência, mas provavelmente ele já sabia disso. Terá sido mais para iniciar uma conversa que fez a pergunta inesperada. Mas teve o efeito contrário. Por mais que tentasse pensar num, não o conseguia encontrar, pelo menos para orientar alguém que nada conhece por ali.

Antes de me mudar do Porto para a periferia de uma cidade vizinha, nunca tinha tido dificuldade em dar pontos de referência a quem quisesse chegar a minha casa sem dificuldades. Havia sempre algum grande hotel, uma estátua, mercado ou praça que serviam para orientar mesmo quem não estivesse tão familiarizado com as redondezas. Agora, todas as referências me parecem demasiado longe ou vagas, mesmo obscuras para quem não faz vida para aqueles lados.

A verdade é que habito numa rua vulgar, sem nada de especial, nada digno de se considerar um ponto de referência. Nem sequer o nome, pois na mesma cidade há outra rua de nome igual. O problema não é propriamente do sítio em si. Ao longo do tempo, a identidade de antigos espaços rurais que são engolidos pelas urbes tende a perder-se, a ser disfarçada na ambiguidade. Por isso, gosto de gastar tempo a percorrer as imediações de minha casa, procurando alguma curiosidade, algum elemento, por menos extraordinário que seja, que me ajude a perceber que espaço é este que habito. Um desses vislumbres aconteceu por acaso, quando numa manhã, a caminho da paragem do autocarro, ouvi o som forte da água a correr. À minha esquerda, muito disfarçado por um muro de malha de cimento, e um pouco abaixo da cota da rua, vi um tanque de granito e uma mulher que lá esfregava as suas roupas. Lembrei-me imediatamente do tanque da aldeia da minha avó, na Beira Alta. Ficava mesmo no centro da aldeia, em frente a sua casa, que como as restantes não tinha água canalizada. O tanque servia para matar a sede aos animais, para cozinhar, beber e lavar e estava bem visível a todos que passavam. Era um ponto de encontro e de convívio, um ponto de referência.

Porquê disfarçar aqui este espaço – vestígio de uma ruralidade envergonhada? Porque não derrubar o muro gasto e sujo que o rodeia e dar-lhe honras de monumento vivo? Talvez a dureza da água fria e do sabão não estejam na moda por aqueles lados. Talvez os vizinhos prefiram conviver em silêncio na lavandaria automática, uns metros à frente, ouvindo apenas o tambor das máquinas e sem precisarem molhar as mãos.




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