Crónica de Jorge Manuel Lopes: «Assunto de foro privado»

(Fotografia de Marcus Loke/Unsplash)
As casas que habitamos são a derradeira e mais forte materialização da reserva física e psíquica que devemos exigir para nós.

Conversando com a minha camarada de “Evasões” Ana Luísa Santos, descobrimos que partilhamos um fascínio não consumado por espreitar para lá das fachadas de edifícios de habitação alheios. Prédios, moradias ou mansões, urbanos ou nem tanto, antigos e recentes, de aspeto imaculado ou em aparente abandono. Maravilhosamente banais, quem sabe excecionais. Não é, juro, um interesse bisbilhoteiro pela minúcia da intimidade alheia, antes pela arquitetura, pelo design, pelas marcas que o tempo e a vivência dos lugares imprimem às paredes, ao chão, aos objetos, ao ar.

A conversa surgiu a propósito das casas que compõem a paisagem da faixa litoral da nossa Vila Nova de Gaia, mais concretamente entre Francelos e Granja, com Miramar e Aguda pelo meio. A soberba mistura de habitações de múltiplas eras e estilos, opulentas e modestas, grandes e pequenas, dissimuladas em arvoredo ou encasteladas rumo ao céu, é tão merecedora de passeio atento como as praias, bares e restaurantes daquela língua de meia dúzia de quilómetros ensanduichada entre a Linha do Norte e a areia. É uma mistura que conversa e se dá bem entre si.

Como serão estas casas por dentro? Quem vive nelas? Quanto custa mantê-las, quem tem dinheiro para isso e o que fazem na vida os proprietários (sim, isto já resvala para a bisbilhotice; chame-se-lhe consciência de classe)? As respostas serão múltiplas e aqui e ali há residências de que deixou de ser possível cuidar. É, além disso, o tipo de edificado que dificilmente será contemplado em eventos como a Open House Porto – consultando o roteiro da edição de julho deste ano, e para lá de todas as inegáveis virtudes, em mais de 70 locais visitáveis, os dedos de uma mão chegam para contar as casas que, lá está, se abrem (já na Open House Lisboa abundam os apartamentos e casas visitáveis).

E não há, de facto, motivo plausível para que este véu da intimidade seja levantado. Num momento em que somos polidamente chantageados para a inevitabilidade da conectividade permanente e invasiva, as casas que habitamos são a derradeira e mais forte materialização da privacidade física e psíquica que devemos exigir para nós. Por muito que custe, à minha curiosidade é legítimo e sadio responder como os Public Enemy no final do tema “More news at 11”, quando alguém lhes pergunta como vai ser o seu futuro: “None of your goddamn business”.




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