Crónica de Inês Cardoso: Viagens a lugares imaginados

(Fotografia de Dan Dumitriu/Unsplash)
Há um prazer quase mágico em deambular pelas páginas de um livro capaz de nos levar a vestir outra pele, desafiar a lógica dos nossos conceitos e desarrumar preconceitos.

Nunca estive no Kansas nem pus os pés no Minnesota, mas posso assegurar que em miúda passei horas a viajar pelas paisagens dos dois estados. Visualizei a construção das casas de madeira na pradaria, em pleno século XIX, tentei imaginar o que seria o melaço, descobri pragas de gafanhotos, o trabalho manual para fazer manteiga, as longas viagens de carroça entre nuvens de pó ou de trenó na neve gelada, as festas de ação de graças e os detalhes quotidianos descritos por Laura Ingalls.

Quando comecei a ler, a biblioteca sobre rodas da Gulbenkian era o único espaço rico em livros que tinha à disposição. A coleção que descreve as aventuras da família Ingalls foi uma das primeiras que devorei, retirada por acaso das prateleiras da Citroën encarnada. Escolher semanalmente o que levar tornou-se um ritual imperdível. Não levava sugestões ou pistas de leitura, mas o acervo necessariamente limitado da biblioteca itinerante era já de si selecionado de forma a permitir o encontro com clássicos intemporais.

Viajar é uma das minhas paixões e será fácil aceitar que nenhuma descrição ou imagem substitui o prazer da descoberta de espaços, pessoas e culturas. Sair do lugar traz-nos sempre conhecimento – de tradições, de paisagens, de história, de sabores, de sensações, de olhares simplesmente diversos que nos fazem mudar o ângulo e ganhar novas perspetivas. Sair do sítio é essencial para percebermos o mundo do outro, o que o motiva, e para apreendermos o quanto somos pequenos face à dimensão do que nos rodeia.
Ainda assim, há um prazer difícil de descrever em deambular por páginas mágicas que nos movem de uma forma tão discreta e simultaneamente profunda que se torna difícil de compreender. Com um livro conseguimos viajar no tempo, vestir outra pele, desafiar a lógica dos nossos conceitos e desarrumar preconceitos. Encaramos medos profundos, inquietações que tendemos a esconder no silêncio mais fundo de nós, sonhos e aspirações que por vezes julgamos nossos mas são afinal universais.

Sou feita de muitos lugares, alguns apenas imaginados. E chego a ter dificuldade em perceber nos quais aprendi mais. Venho do meio das estevas e do rosmaninho, mas venho também da frente ocidental da guerra, da miséria absurda da cidade da alegria, da mansão dos Buendía, do bailado emaranhado de Lueji, das cores quentes e dolorosas de Frida decompostas em palavras, das ruas de Bruges em que Zenão inconformadamente procura a verdade. Venho das possibilidades infinitas da palavra.




Outros Artigos





Outros Conteúdos GMG





Send this to friend