Crónica de Inês Cardoso: Mar, metáfora para a vida

Peniche. (Fotografia de Adam Hornyak/Unsplash)
Na sua aparência de infinitude, deslumbra-nos por nos fazer crer que a partir dele pode conhecer-se a essência do mundo.

Ali, na terra que já foi mar, o vento é uma presença permanente. Molda a paisagem, as rotinas, a omnipresença do surf, varre o cabo Carvoeiro e seduz por nos lembrar a força e a aridez inequivocamente bela dos séculos sulcados na pedra. Não é metáfora: na península de Peniche, as rochas em diferentes formações registam cerca de 200 milhões de anos. Remontam aos primórdios do Jurássico, muito antes de os dinossauros povoarem a terra.

Junto ao farol do Cabo Carvoeiro, o campo de lapiás é uma mina de estudo para geólogos. Na península-às-vezes-ilha do Baleal, os sulcos inclinados da escarpa e da ilha das Pombas deliciam mesmo quem não percebe nada de geologia. Deambulamos por aqueles inusitados blocos cársicos, com o vento a bater na cara, e basta-nos a paisagem ampla, as Berlengas ao fundo. Deixar que tudo nos entre pelos olhos.

Sempre gostei da força selvagem do mar no inverno. O verão pede calma suficiente para nos adentrarmos nele. Nos dias frios, é sobretudo de observar que se trata. A rebentação de ondas fortes tem um efeito encantatório. A música evolui em crescendo até ao estalo feroz sincronizado com os salpicos de espuma que formam a cada momento diferentes figuras. É um espetáculo sempre diferente, apesar de aparentemente tão visto na sua eterna repetição.

Sendo só um, o mesmo mar mostra-se com mil roupagens e tonalidades. Ora batido e gelado, ora manso e reconfortante. Mesmo quando o conhecemos surpreende-nos, tantas vezes traiçoeiro. Não devia ter mais de sete ou oito anos quando fui enrolada por uma onda em São Pedro de Moel. Nunca mais me esqueci do som, um falso silêncio borbulhante, e da inutilidade com que me debatia. Rebolava em escassos centímetros de água, até ser agarrada e erguida. Percebi como é fácil a desorientação quando as ondas ditam as suas regras e nos impõem respeito.

Até hoje mantenho pelo mar esse misto de admiração e profundo respeito. Na sua aparência de infinitude, deslumbra-nos por nos fazer crer que a partir dele pode conhecer-se a essência do mundo. Como se transfigura a cada momento, dá-nos motivos inesgotáveis de descoberta. Podemos estar sempre no mesmo lugar, olhando incessantemente o mesmo ponto, e ainda assim encontraremos diferenças.

Parece-me a melhor metáfora para a viagem e para a vida, ambas a quererem-se imensas e irrepetíveis. Mesmo quando a rotina se instala. Mesmo quando repetimos destinos. A felicidade é, afinal, apenas isto: sabermos que há receitas simples, miraculosamente simples, que nos reconfortam apesar de já sabermos o que esperar delas. E que abrem, por isso, um tempo mágico para além do espaço.




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