Crónica de Inês Cardoso: apreciar mais a viagem do que o destino

Crónica de Inês Cardoso: Apreciar mais a viagem do que o destino
«Quando viajamos, metade do prazer começa antes de sairmos do sítio», diz Inês Cardoso. (Fotografia: DR)
O segredo mais banal e ainda assim inalcançável da vida está na capacidade de fruir e deixar cada momento entrar-nos pelos poros.

Passo horas em viagens de carro, em trajetos repetidos que há muito perderam a novidade e obrigam aos mais inusitados jogos para evitar a pergunta do costume. “Ainda falta muito?” Falta. Agora o jogo das matrículas, depois fazemos mais uma corrida, pelo meio damos um saltinho ao baú de memórias. Este é o momento mais divertido, quando recordamos viagens de outros tempos ou histórias das muitas vezes em que a minha desorientação me pôs fora de rota.

Na última viagem, a Sara confessou algo que nunca lhe tinha ouvido. “Quando era miúda, um dos meus maiores objetivos era crescer até ser mais alta do que o carro.” Olho-a surpreendida. Como assim, qual o interesse de te medires pelo carro? “É que via as pessoas falarem umas com as outras de um lado para o outro do carro e parecia-me algo espetacular, porque eu não conseguia”.

Os sonhos nunca têm o tamanho da nossa altura. E o curioso das fantasias das crianças é que conseguem ser simultaneamente impossíveis e simples. Num momento podem estar a imaginar-se noutra galáxia, a fazer frente a ameaças extraterrestres. No minuto seguinte sonham simplesmente ter idade para calçar sapatos de salto alto, o que em princípio se atinge de braços cruzados, deixando tranquilamente que o tempo passe e faça a sua parte.
Há nesta capacidade de sonhar, ora em modo desmesurado, ora em total consonância com a realidade, uma sabedoria infinita. Em crianças sabemos viver sem limites, deixando que as ideias voem livremente. Ao mesmo tempo que nos deliciamos com o mundo dos adultos, sabendo secretamente que um dia faremos parte dele. Colocando no futuro um glamour que ele nunca terá, enquanto vamos fazendo do presente a brincadeira que ele deve ser. No fundo, sem levar a vida demasiado a sério, mas sonhando com seriedade, o que parecendo paradoxal não o é.

Quando viajamos, metade do prazer começa antes de sairmos do sítio.

Os miúdos sonham quase sempre ser grandes, como a Sara ao querer vencer a altura de um carro para poder comunicar para além dele. E enquanto a idade adulta não chega, divertem-se o mais que conseguem. Sabendo que a viagem vale tanto como o destino e que exatamente por isso há que saber aproveitá-la.

Quando viajamos, metade do prazer começa antes de sairmos do sítio. Entusiasmamo-nos assim que imaginamos o local, o que poderemos ver, as descrições que vamos lendo ou ouvindo, as referências e dicas sobre o que não poderemos perder. Pode acontecer que cheguemos ao final ligeiramente desiludidos, sentindo que nem tudo (às vezes quase nada) correu como tínhamos suposto. Mas se soubermos sentir e deixarmo-nos surpreender por cada descoberta, terá sempre valido a pena.

O segredo mais banal e ainda assim inalcançável da vida está nessa capacidade de fruir e deixar cada momento entrar-nos pelos poros. “Ainda falta muito?” Apenas podemos desejar que sim. E, mesmo cansados da estrada ou das rotinas que ameaçam adormecer-nos, tentar apreciar cada minuto da viagem, sem pressa de chegar ao destino.

 

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