Crónica de Inês Cardoso: amar pelo estômago

A comida une, diverte, reconforta. Rima com conversas demoradas, com risos e descontração e até com discussões quando é preciso.

Estou a caminho dos 44 anos mas ainda ando com tupperwares dos pais atrás de mim. Quando vou a casa (e casa para mim será sempre Proença-a-Nova), é raro não haver um mimo à minha espera. Um prato com os legumes da época, por exemplo, daqueles que nunca saberei fazer na perfeição, como a salada de almeirão com feijão. Mesmo quando não estão os meus pais fazem-se presentes.

Uma vez cheguei para o fim de semana e tinha uma caixa carregada de pêssegos, figos e morangos, com um pedaço de papel. “Para a Inês.” Aquele bocado de folha no meio dos figos que me deliciam era a mais bonita dedicatória de amor. Simples e perfeita.

Comida é cuidado desde que nascemos. Mas vamos aprendendo a apreciá-la quando crescemos e corremos noutras direções. Muitas vezes a ida para a faculdade é esse marco e cada regresso a casa traz-nos de volta os sabores habituais, que tentamos levar connosco em caixas com refeições para a semana seguinte.

Nada nos transporta tanto para lugares seguros como um prato que apreciamos. Acontece através dele revisitarmos momentos, dias de encontro, hábitos da infância. Memórias e pessoas nossas. Tentamos cozinhar uma receita das avós e nunca sai igual. Não quer dizer que sejamos maus na cozinha, mas falta o tempero de amor inigualável com que nos era preparado.

Nada nos transporta tanto para lugares seguros como um prato que apreciamos. Acontece através dele revisitarmos momentos, dias de encontro, hábitos da infância. Memórias e pessoas nossas.

Não é por acaso que nos juntamos e convivemos à mesa. A comida une, diverte, reconforta. Rima com conversas demoradas, com risos e descontração, rima até com discussões quando é preciso, porque não há relações sem tempestades. Sou contra refeições à pressa ou em horários desencontrados. Isso de cada um comer à hora conveniente ou de jantar em frente à televisão nunca fará sentido em minha casa.

Os hábitos e alimentos da moda vão mudando, por razões culturais e ambientais continuarão a mudar, mas não acredito que desapareça o gosto por estar à mesa. Por procurar, para cada jantar especial, a entrada ou sobremesa perfeita para surpreender e deliciar. Por escolher, para cada pessoa, o ingrediente de que mais gosta. Por dizer, através do prato, que gostamos e nos preocupamos.

Há tempos escrevi no Facebook uma pequena reflexão sobre isto que me atrevo a recuperar, porque sintetiza esta forma tão intensa de amar pelo estômago.

Às vezes apanho pão quente numa padaria e corro para casa na esperança de resgatar memórias felizes da infância. O mimo tem muitas formas mas uma das maiores é o cuidado com que nos servem aquilo de que mais gostamos. Por isso a casa dos avós saberá sempre a queijo fresco, a talassas feitas nas brasas, a maranho, a tigelada, a pudim de caramelo com leite de cabra, a café de cevada na cafeteira, a gemada, a pão com azeite e açúcar louro… E a pão quente, o sabor mais próximo da perfeição.

Quando estava em Proença, acontecia as avós mandarem, pelos tios, pães cuidadosamente embrulhados assim que saíam do forno, para que o calor não se perdesse nos quilómetros da viagem. Aquele pão era todo amor. Não admira que não encontre outro parecido.

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