Crónica de Inês Cardoso: a vida à volta da mesa

Fotografia: Pexels/DR
Saber que tudo é, nestas festas, tão diferente e esquisito não significa que tenhamos de nos contentar com pouco ou reduzir o nível de expectativas, sonhos e aspirações.

Não haverá ninguém que não tenha perdido alguma coisa no ano que está a terminar. A medida dessa perda é que será inevitavelmente muito diversa. Há quem tenha perdido abraços e encontros, viagens, liberdade de movimentos, descontração e leveza. Há quem tenha ficado sem capacidade económica, emprego, empresas. Ou ainda quem tenha perdido a saúde e até a vida de familiares ou amigos.

Neste Natal tão esquisito e gerador de sentimentos contraditórios, há muitos lugares vazios à mesa e mesmo os que estiverem de coração tranquilo não poderão deixar de sentir as dores de tantos. Tudo o que queremos, este ano, é a alegria de estarmos com as nossas pessoas. O prato tradicional que une, o brinde que é comunhão e esperança, o riso e a história ou anedota que se fazem memória e perduram no tempo. A vida à volta da mesa.

Saber que tudo é, por agora, tão diferente, não significa que tenhamos de dramatizar ou de tornar estas festas pesadas e cinzentas. E significa ainda menos que tenhamos de nos contentar com pouco, encolher os ombros e conformarmo-nos com o que resta. Quando a incerteza e o inesperado nos atropelam, é frequente recolocarmos muitas coisas em perspetiva, mas não creio que a melhor atitude seja nivelar por baixo. Uma coisa é dar valor às coisas certas. Outra achar que a gratidão pelo que temos nos deve fazer reduzir o nível de expectativas, sonhos e aspirações.

A sabedoria é feita de um equilíbrio muito exigente. Consiste em saber que somos nada, feitos de fragilidade absoluta que a qualquer momento pode ser agitada pela imprevisibilidade dos dias. E, ainda assim, não nos deixarmos paralisar pelo medo, mantendo intacta a capacidade de aspirar e projetar.

A arte existe porque a vida não chega e estamos sempre a criar formas de pensar para lá dos seus limites. De reinventar pessoas, espaços, sensações, sons. Pouco importa a discussão sobre a relação entre arte e religião e a forma como, consoante a fé ou a falta dela, diferentes pensadores consideram que criámos uma e outra para atingirmos a transcendência. Importa a nossa capacidade de aspirarmos continuamente a mais, de construirmos tanta coisa capaz de nos fazer estremecer interiormente.

Neste Natal, na viragem para um novo ano que desejamos mais liberto e prometedor do que foi 2020, é natural que estejamos carregados de inquietação e de insatisfação. O que é, tantas vezes, ponto de partida para fazer nascer algo melhor. O Natal é, afinal, simplesmente isso: acreditar na vida além dos limites do possível. Na sua simplicidade, que não a impede de ser infinita.




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