Crónica de Inês Cardoso: A espera fria pelas cerejeiras em flor

Cerejeiras em flor. (Fotografia: Global Imagens)
Para florirem no tempo certo, as cerejeiras exigem centenas de horas de temperaturas baixas. A dureza é a certa altura absolutamente necessária para que haja um dia fruto.

Para florirem no tempo certo, ajustando o seu ritmo ao das estações, as cerejeiras exigem entre 700 e 1400 horas de frio. Definido em linhas muito simples, este conceito equivale a um período de 60 minutos consecutivos em que a temperatura atmosférica é inferior a 7,2 graus. Não admira, olhando para as características do nosso território, que as culturas de cereja estejam sobretudo nas zonas interiores do Norte e Centro, com grandes amplitudes térmicas e invernos rigorosos.

Percebo muito pouco de agricultura e até as flores têm vida difícil às minhas mãos. Mas aprendi esta lição simples com uma amiga produtora de cereja, num daqueles dias de inverno em que desabafei contra o frio. “Quando estiveres cansada de temperaturas baixas, lembra-te que precisamos delas para ter boas cerejas.” O argumento revelou-se eficaz. Volto a ele com frequência, como exemplo das muitas missões úteis dos dias invernosos.

Há uma sabedoria infindável em ouvir baixinho as lições da natureza. Ensina-nos sobre paciência, porque cada ciclo de vida tem o seu tempo e exige espera. Ensina-nos sobre as características próprias das espécies, como se cada planta fosse um mundo inteiro que temos de conhecer para escolher os gestos que se lhe adequam. Ensina-nos o valor da contemplação e dos detalhes, porque mesmo os mais mínimos podem fazer toda a diferença. E ainda, talvez a lição mais importante, que nem todo o nosso esforço chega para uma boa colheita, tantos são os fatores imprevisíveis que não controlamos. Quem vive em comunhão com a natureza tem consciência plena da nossa fragilidade e da naturalidade inevitável da morte.

A passagem das horas, dos dias e das estações lembra-nos que tudo tem uma razão de ser, ainda que por vezes possa parecer-nos incómoda ou cause impaciência. A dureza é a certa altura absolutamente necessária para que haja flor e um dia fruto. É provável que a nossa vida esteja inundada de coisas que dispensaríamos de boa vontade, mas é difícil saber a falta que algumas delas iriam fazer-nos.

Pode parecer um lugar-comum dizer que o frio é importante para valorizarmos o calor, ou que sem dificuldades muitas vitórias não teriam o mesmo sabor. Mas não vale a pena ignorar princípios certeiros só porque parecem saídos de manuais estafados de autoajuda. Não podemos aspirar a uma espécie de felicidade permanente – e talvez ficássemos surpreendidos com as sensações pelas quais iríamos passar se pudéssemos experimentá-la. Entristecermo-nos acaba por ser uma condição essencial para nos despojarmos do que não interessa. Para deixarmos cair as folhas e nos prepararmos para outras coisas por vir. A sabedoria consiste em saber que queremos rir-nos às vezes. Só um tolo se ri a toda a hora, por tudo e por nada. As cerejas, desejadas porque efémeras, sabem disso.




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