Crónica de Dora Mota: Relato de um abraço que levei da vida

(Fotografia: picjumbo.com/Pexels)
Há muitos anos, uma reportagem tardia numa véspera de Natal mostrou-me outras maneiras de cumprir a vocação humana para cuidar da comunidade.

Numa ocasião, há muitos anos, era eu muito jovem, um chefe que me queria castigar por eu ser contestatária, decidiu que eu seria a última jornalista a ir para casa na véspera de Natal e marcou-me um serviço tardio. Não havia online, então o serviço às 19h era mesmo o fim da agenda do dia. Era uma reportagem sobre o Natal dos Sós, que a Associação Nuno Álvares, de Campanhã, organiza há mais de 30 anos.

Ninguém queria chegar a casa tarde nessa noite e eu também não. Dezembro é um mês tradicionalmente intenso nas redações e eu acusava o cansaço, estava estourada da confusão que se instala na cidade… e só queria ir embora do Porto. Mas em tempo de guerra, não se revelam fraquezas e eu não revelei a minha – e fui para o último serviço, carregando a cruz de cara alegre.

Quando lá cheguei, fui recompensada do castigo bem além do que seria necessário. Até hoje, a memória dessa noite me enche o coração de calor. Um conjunto de voluntários trabalha nos dias anteriores e nessa noite em particular para servir uma ceia de Natal a pessoas que, se não fossem ali, estariam sozinhas em casa. Algumas, sem capacidade de pôr uma Consoada na mesa.

Não eram todas pessoas desfavorecidas no sentido financeiro, eram pessoas com várias formas de solidão: sem família, com os filhos e os netos longe, idosas ou com algum tipo de incapacidade. Ou então, tinham estas formas de isolamento em doses diferentes. A solidão é transversal, tem muitas caras e infiltra-se em todas as vidas. Tinha ali diante de mim todo um catálogo de escolhidos da solidão.

Como noutras ocasiões do meu trabalho (tantas!), a situação de me ser escancarada uma porta para algo contrastante com a minha própria realidade deixou-me comovida. Esperava-me em casa uma família calorosa, o aroma a comida natalícia no ar, algumas prendas, a perspetiva de um serão de aconchego. Estes embates nunca deixaram de me tocar profundamente – e à conta deles, percebi que isso que se diz dos jornalistas se tornarem mais duros com o tempo, é um mito. Quanto mais esclarecido, mais sensível e dorido fica o nosso coração.

Todos os Natais, um doce pensamento meu vai para aqueles que percebem melhor do que toda a gente que o ser humano precisa dos outros para estar bem. E que os pormenores aplicados ao cuidado com os outros fermentam e crescem nessa dádiva. Naquela noite, eu queria ficar ali a consoar, no meio daquela alegria. A dada altura, não se distinguia quem eram os sós, porque ninguém estava só. Um momento de alegria e carinho pode ser um rochedo a amparar uma alma sofrida.




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