Crónica de Dora Mota: Quanto tempo o tempo tem

(Foto: Xavi Cabrera/Unsplash)
Começar de novo a ser mãe de um bebé obrigou-me a reformular toda a distribuição do meu tempo e atenção, dispensando as aflições da primeira viagem.

O meu filho mais novo faz uma fila de dinossauros, vacas, cavalos e ovelhas, intercalados com carrinhos, que dá a volta à carpete da sala… e mais umas voltas em redor de si mesma. Entre cada animal ou viatura, há um espaço determinado a respeitar. Há critérios a cumprir para fazer a fila – ou várias filas, ele vai variando o modelo – e para a desfazer. Eu, o pai ou a irmã mais velha temos que fazer uma narração, que tem alguma exigência criativa e de modulação de voz – enquanto o Tiranossauro Rex caça todos os elementos da fila.

A minha filha também fazia longas filas de carrinhos e as mais altas torres de legos que conseguia. Era fascinante vê-la equilibrar-se nos seus dedinhos dos pés, e ensaiar primeiro esse delicado equilíbrio, até se sentir confiante para colocar o último lego que a sua altura permitia no cimo da torre.

Muitas vezes, esse esforço vacilava e um pequeno toque fazia a torre cair. Ela soltava um suspiro de frustração e começava de novo. Dez anos depois, o irmão revela a mesma paciência no recomeçar. Tal como ela ia aperfeiçoando a capacidade de colocar o último lego sem desabar a torre; o irmão a cada dia consegue uma fila melhor e mais trabalhada. Ter filhos com um grande fosso de idades permitiu-me o privilégio de recomeçar também a desafiar-me a ser mais paciente, tolerante e empática com o tempo.

Começar de novo a ser mãe de um bebé obrigou-me a reformular toda a distribuição do meu tempo e atenção. Com a vantagem de dispensar as aflições e dúvidas da primeira viagem, que libertou muita energia e disponibilidade para desfrutar da segunda jornada. A pureza das crianças pode dar-nos lições preciosas, se conseguirmos ter humildade e disposição para as acatar. O valor que dão ao seu tempo é uma delas – o tempo dos meus filhos pequenos vale muito pelo processo, e não se mede apenas pelo resultado.

O resultado da aplicação do seu tempo é, aliás, frequentemente aquilo que menos vale. O fazer e aperfeiçoar esse fazer são propósitos aos quais dedicam muito tempo. Porque dentro desses humanos pequeninos existe o instinto de que fazendo muitas vezes, se aperfeiçoa o gesto. E de que, à medida que se aperfeiçoa o gesto, melhor controlo se tem sobre ele, e mais poder criativo e plasticidade se ganha na sua execução. O tempo da experimentação e da prática, o tempo da progressiva evolução (seja em que ofício for) tem que ter muito tempo dentro dele. O tempo do resultado é um clique. Façamos por ter tempo.




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