Crónica de Dora Mota: O sonho de escrever a minha terra

(Foto: Pedro Correia/GI)
Eu e todos aqueles que vivemos aqui, aninhados nas serras, somos um bocado raianos da metrópole. É um território híbrido onde há tanta cidade e tanta aldeia ao mesmo tempo.

Um dos meus sonhos é escrever a minha terra. Começar por uma ponta, aqui mesmo nos moinhos de água do Guardão, e acabar na ponte de Ferreira, tão bonita tem estado ela nestes soalheiros dias de inverno. A minha terra, na verdade, fica no encontro entre concelhos – eu e todos os outros aqui aninhados pelas serras de Valongo, Paredes e Gondomar somos um bocado raianos da metrópole.

Somos do Porto em geral e somos das nossas aldeias em particular. Somos ainda uma manta de retalhos de crenças, linguagens, costumes, tradições, culturas e sentido de pertença que continuam a ser os pilares que a cidade pisou no seu crescimento. Até chegarmos a este território híbrido, onde há tanta cidade e tanta aldeia ao mesmo tempo.
Debati-me com isso durante alguns anos – com os prédios a preencher a estrada, que depois se ficou a chamar avenida, com o dito progresso a espatifar alguns horizontes rurais sem uma piedade de harmonia, eu andei sem saber de que terra era. Fui percebendo, ao viver e ao pensar, que a terra está dentro de mim. Melhor dizendo, a minha terra também sou eu, enquanto cá estiver, e tudo o que nela deixar.

Às vezes, quando olho para os meus parentes mais velhos, percebo que estão a entrar na galeria de notáveis da aldeia. Já têm jeitos, manias e algo de lenda – já os saberia contar, já têm uma coleção de histórias e um catálogo de ditos proverbiais. Se os meus filhos puderem dizer o mesmo de mim, é porque terei conseguido ser da minha terra e ser a minha terra. Por agora, sonho em escrevê-la, da senhora do Salto até à ponte de Ferreira, pelos moinhos e pelos Casais até ao feudo de Moreiró, e daí em diante até Sobrado.

Há algo de sacrílego em afirmar que sinto Sobrado como parte da minha terra porque é a aldeia rival da minha. O professor Manuel Pinto também diz alegremente que são “as nossas aldeias”. Ele que, voltando há pouco a ser meu professor, partilhou comigo um artigo chamado “Relações de vizinhança entre comunidades camponesas. As tradicionais rivalidades entre Gandra e Sobrado” (Boletim Municipal de Paredes nº 4, 1981), onde regista as formidáveis piadas que uns contavam sobre os outros – frequentemente as mesmas e sempre atestando a falta de inteligência dos nativos da terra ao lado. Os de Sobrado são os broa de unto e semeiam antes de lavrar; em Gandra, puxa-se a igreja com um fio de lã e empilham-se gigas para chegar ao céu. Como não sonhar em escrever a minha terra?




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