Crónica de Dora Mota: Liguem o sonoro

"Estava então o Bau no Zé do Paula, cheio de gente a olhar para o ecrã onde passava um filme do Charlot e ter-se-á intrigado pelo facto do aparelho passar silenciosas imagens a preto e branco do frenético indivíduo de cartola."
Se pudesse viajar no tempo, voltaria atrás 200 anos para ver o movimento da estrada real na ponte da Pica e para pedir ao Bau que me ajudasse a reclamar ao universo.

O meu pai conta que o Bau da Sapata se sentava numa pedra da ponte da Pica e ali ficava muito tempo, até praticamente não se ponderar o Bau e a ponte da Pica um sem a presença do outro. Não conheci o Bau da Sapata, mas consigo imaginá-lo sentado debaixo do sobreiro, magro e miudinho, porque assisti incontáveis vezes ao ato de deixar-se estar levado a cabo por várias figuras memoráveis da nossa aldeia. O Manel Cagalhoto, por exemplo, estava sempre na descida dos Casais, quem vai do Carreiro para baixo.

Já o Bau gostava mais da centralidade da ponte da Pica, quem sabe por ainda lhe terem chegado relatos do tempo em que ali se pagava portagem para poder passar de uma banda à outra daquela estrada real, a única que existia entre o Porto e Vila Real (e assim foi até 1888). Se pudesse viajar no tempo, voltaria atrás 200 anos para ver o movimento da Pica, onde havia estalagem, mala-posta e parque de cavalos e carruagens. E voltaria atrás 60 anos para ver o Bau da Sapata sentado debaixo do sobreiro. Sobretudo para estar presente no momento em que ele proferiu, no café do Zé do Paula, aquela frase para a eternidade.

Não podendo viajar no tempo, tenho de recorrer à reconstituição histórica das pessoas reais com características mitológicas que viveram na minha terra – e conto com o meu pai e os meus tios como fontes. Sucede que o meu pai e os meus tios também foram instruídos, em muitas ocasiões, pelos historiadores da geração anterior e esses idem aspas. Diversos factos ter-se-ão perdido nesse circuito, mas não é caso para o desmerecer. Afinal, o que se deseja das narrativas sobre os semideuses é abundância de detalhes, emoções e uma moral da história. A verdade não é para ali chamada.

Tem-me ocorrido o dizer do Bau a propósito das restrições da pandemia que nos trazem a alma num desconsolo.

Voltando ao Bau da Sapata, ele deslocava-se sempre à face dessa antiga estrada real para ir ao Zé do Paula – que era, no costume antigo, café, tasca e mercearia ao mesmo tempo. Foi lá que apareceu um dos primeiros televisores da aldeia, e um outro no café da tia Rosa, igualmente multifunções. O meu pai e o meu padrinho apanharam coças lendárias por ficarem a ver o Bonanza esquecidos de voltar a casa, mas não lhes deixou trauma porque os olhos brilham quando contam, e recontam, o voo picado do chinelo da tia Lena a bombardear-lhes o traseiro.

Estava então o Bau no Zé do Paula, cheio de gente a olhar para o ecrã onde passava um filme do Charlot e ter-se-á intrigado pelo facto de o aparelho passar silenciosas imagens a preto e branco do frenético indivíduo de cartola – perante a passividade da demais audiência. Tanto quanto sei, o Bau da Sapata era um homem simples e inclinado ao bem, por isso parece-me verosímil que tenha ido direto ao assunto.

Ficou célebre o que ele então vociferou, erguendo-se, miudinho e com a dificuldade do seu braço aleijado, para se dirigir ao dono da tasca. “- Ó senhor José, ligue o sonoro!”. Atenção que este pormenor da lenda é fundamental, ainda que difícil de reproduzir apenas pela escrita – que, tal como o Charlot, não tem sonoro. É que ele disse “sonooooooroooo” com os pulmões abertos e numa só nota cava, qual som da trombeta bíblica no momento em que Moisés libertou os hebreus do Egito.

Desde então, conhecem-se diversas aplicações para a frase lapidar do Bau da Sapata, cujo potencial semântico é alegremente inesgotável. Tem-me ocorrido esse dizer a propósito das restrições da pandemia, que não nos deixam estar uns com os outros e nos trazem num desconsolo de alma de que não há memória. Queria ter aqui o Bau e pôr as mãos em concha ao lado dele para reclamar ao universo, qual trombeta bíblica, que ligue o sonoro da vida.




Outros Artigos





Outros Conteúdos GMG





Send this to friend