Crónica de Dora Mota: gostar de tudo

Dizer que se gosta de tudo é uma das expressões portuguesas do franco prazer de viver que eu mais... gosto. Quem gosta de tudo, só pode ser boa pessoa.

O que eu mais gostava era de ver os meus filhos a gostarem de tudo. De alguém lhes perguntar: do que é que gostas? e eles responderem “gosto de tudo”. É uma das expressões portuguesas do franco prazer de viver que eu mais… gosto! Gosto de ouvir alguém dizer que gosta de tudo, gosto de perceber que quanto mais provo de comer e de beber, do que é popular e do que é luxuoso, mais sei que gosto de tudo. E gosto mesmo, até do que não posso comer. A dada altura, dei por mim intolerante a mariscos, lulas e polvo. Fico tão doente que optei por viver sem todo esse vasto – e infinitamente saboroso – cardápio marítimo.

Todavia, a cada passo, viajo por suculentas memórias de lulas a sair da grelha, arroz de polvo malandrinho, a sapateiras recheadas, a pratinhos de amêijoas e berbigão. O sabor, a textura, o cheirinho… Podia escrever um livro sobre este desgosto de gostar de tudo e não poder comer o que gosto. Por isso, quando alguém me pergunta: do que não gostas?, eu digo que gosto de tudo, mesmo do que não posso comer.

A minha filha mais velha tem algumas embirrações (daquelas que passam com a idade, como não gostar de tomate), mas o meu filho mais novo gosta genuinamente de tudo. É um gosto perceber como ele gosta de tudo. E o gosto que me dá dizer: “O meu filho gosta de tudo”. É das coisas mais bonitas que se pode dizer de alguém. Nesta cultura de sincero amor à comida, descrever alguém como gostador de tudo é um gigante elogio. É associar a essa alma outras virtudes mais além do paladar: quem gosta de tudo, só pode ser boa pessoa. É generoso, grato e solidário. Quem gosta de tudo, é honrado. Quem gosta de tudo, não é esquisito. Ser esquisito é mau, ninguém quer conviver à mesa com um esquisito.

Gostar de tudo e não ser esquisito são critérios que elegem uma pessoa como deve ser, nesta velha pátria de saborosa e honesta cultura de comer – e de partilhar a mesa. O verbo gostar vem do latim, de “gusto, -are” que é provar. Tornou-se até corrente, nestes tempos de gourmetização da mesa, falar em degustar. Que significa, de acordo com o dicionário, “apreciar com atenção, suavidade e delícia”. É um gostar académico, digamos assim. Eu gosto de degustar, mas continuo a preferir o gostar sem rodeios. E gostava muito que os meus filhos crescessem a gostar de tudo.

De rabo de boi e língua de vaca, de arroz de grelos e de favas cozidas, de ervilha de quebrar e de orelheira. De todos os peixes e todos os crustáceos. De bacalhau e de lampreia. Do rabinho da broa e de sarrabulho. De tomate coração-de-boi e de nabiças. De queijos. De vinho verde tinto e de aguardente velha.“Do que é que não gostas? Gosto de tudo”. Isto podia começar um livro, podia ser a primeira cena de um filme, o arranque de um poema. O crítico de comida e bebida da Evasões (e nosso companheiro de bons conselhos e também paciente mestre), o Fernando Melo, tem um blog chamado Gostamos de tudo – e eu já gostava do Fernando antes de saber isso. Comer na mesma mesa que ele é sempre uma experiência memorável. Gostar de tudo é todo um currículo da (boa) alma.




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