Crónica de Dora Mota: Apreciar é viver (melhor)

(Fotografia: DR)
Tornei-me jornalista por causa do meu pai, que me treinou para apreciar. Mostrou-me a importância e o prazer de dedicar tempo e atenção ao que nos rodeia.

O meu pai fez ontem 67 anos e a prenda que me pediu foi esta: todas as crónicas que eu escrevi na Evasões. Foi assim que fiquei a saber que esta é a septuagésima primeira, o que faz praticamente um livro. Acho justo que a crónica número 71 seja dedicada a quem tem culpa de eu ter escolhido ser jornalista, que é ele. É certo que à conta de toda a minha escrita ter drenado para o redemoinho do jornalismo, nunca escrevi um livro. É o paradoxo desta profissão: vamo-nos a ela por ter paixão pela escrita e pelo Mundo e depois, nicles. Escrevemos notícias e reportagens, deixamos as nossas histórias para trás, tenho deixado muitas. Há tempos, fiz uma lista das que andam a bailar-me na
cabeça e devem chegar também às 71.

É por isso que o meu pai adora que eu escreva crónicas, porque nelas eu pinto histórias em vez de notícias e isso para ele já basta. E então, vai até ao café Aromas e Sabores, em Gandra, e diz assim ao Pedro: leste a crónica da minha filha? E o Pedro, muito sorridente atrás do balcão, “li sim, senhor Mota, estava muito boa” e ele fica muito orgulhoso por ter uma filha que é mais ou menos escritora. E não pede mais: “Tu escreves como o Miguel Torga”, e eu sem saber uma centésima parte dos adjetivos cavernosos que o Miguel Torga usa, mas orgulho de pai é como equipa vencedora, não se mexe.

Dizia eu que a culpa de eu ser jornalista é dele, porque o meu pai faz todos os dias, desde que me lembro, uma coisa que é mandar-me apreciar. Estamos no carro, na rua, no café, na praia, à mesa de casa, em qualquer lado e ele dá-me uma cotovelada abrupta e diz entre dentes: – Aprecia.

O que mais desejo é herdar o seu pragmatismo poético e ir vivendo as obrigações da vida sem deixar de gozar estar viva todos os dias.

Eu era pequena e andava com ele nas lidas da vida e em qualquer momento, lá vinha a cotovelada e o sussurro. – Aprecia. Às vezes era apenas uma pessoa, mas podia ser uma qualquer ação, uma paisagem ou ainda todo um ambiente. Às vezes, orientava-me para uma personagem em especial, outras vezes para pequenos rituais. O meu pai alertou a minha atenção para muitos cenários, detalhes e desfechos, levando-me a parar e observar. Mostrou-me a importância – e o prazer – de dedicar tempo e atenção ao que nos rodeia. Já dei por mim em reportagem a ouvir a voz dele no pensamento; – Aprecia.

Tem uma sensacional riqueza semântica esta palavra-chave do meu pai. Ele não diz “vê”, nem “ouve”, nem “olha”. Diz “aprecia”, que é algo que envolve todos os sentidos e ainda disposição mental. Apreciar é examinar, ponderar, atribuir valor a algo, o seu substantivo é apreço – que significa estima, admiração. Apreciar é dar valor ao que se observa e usar tudo o que temos nesse ato. Se não tivesse sido treinada para apreciar desde que me conheço, não teria desenvolvido competências de repórter, não me teria interessado gulosamente pela orografia da existência –
sobretudo pela sua graça e ironia.

Por saber que o meu pai lê muitas vezes o que eu escrevo, procuro dar-lhe o gosto de o fazer bem feito. O que mais desejo é herdar o seu pragmatismo poético, e ir vivendo as obrigações e as torturas da vida sem deixar de gozar estar viva um bocado todos os dias. “Se dormires mal, levanta-te e vai apanhar ar fresco nas trombas”, é o seu conselho-paradigma. Fui muitas vezes apanhar ares frescos nas trombas que me reconciliaram com a vida. Parabéns, pai. Aprecio-te muito.




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