Crónica de Domingos de Andrade: Viajar à roda do quarto

Time Travellers passeios turísticos e culturais Lisboa
Castelo de São Jorge. (Fotografia de Carlos Manuel Martins/GI)
Esquecemos as gente se deixarmos os rooms, os zimmers e os chambres vazios.

Que viaje à roda do seu quarto quem está à beira dos Alpes, de inverno, em Turim, que é quase tão frio como Sampetersburgo – entende-se. Mas com este clima, com este ar que Deus nos deu, onde a laranjeira cresce na horta, e o mato é de murta, o próprio Xavier de Maistre, que aqui escrevesse, ao menos ia até o quintal.”

Ao menos ir até ao quintal. Percorrer hoje o “Viagens na minha terra”, lendo Almeida Garrett a ironizar com o romance francês de Xavier de Maistre que fazia o furor dos serões literários nos alvores do século XIX, o “Viagens à volta do meu quarto”, é obrigar-nos a sair do nosso torpor pandémico e a redescobrir-nos. Enquanto país, enquanto gente que às vezes se esquece que é gente e que é da gente que trata. E se trata. Gente que precisa da gente.

A começar pelas cidades, que agonizam hoje sem a babel turística de que tanto nos queixámos. De pouco vale ufanarmos pelas ruas para nós se nós não vamos às ruas. Levar os miúdos pela mão, a ver as vistas que eles só veem pelas janelas dos carros, como se o mundo fosse tão virtual como virtual é com eles sempre ligados às máquinas, descer e subir pelas escadas rolantes de Miragaia, que as pedras do Porto também abafam no verão, descer e subir as ameias do castelo de S. Jorge, em Lisboa, ou ir à volta, pelo interior, a brincar aos segredos de cada uma das aldeias históricas de Portugal, respirar no Parque de Montesinho (já por ali ouvi, sentado na terra de um casebre isolado, histórias foragidas da rede bombista, servidas com vinho arrefecido nas ervas e broa com chouriço), a comer bom comer no solar Bragançano, do Desidério e da Dona Ana, que ela sabe mais de vida que as vidas que o Desidério cantarola, mas não as diz, e dormir em Chacim, bem no sopé da Serra de Bornes, já em Macedo de Cavaleiros.

Há por lá passados para contar devagarinho e até um solar, que se chama de Chacim, mas é do João Aníbal e da família, com soalho de madeira a ranger, onde se dorme sem medos e se refresca da viagem nas águas sozinhas da piscina. Os miúdos às vezes precisam disso para enfrentar os nacos de vitela na brasa que se comem nos pequenos restaurantes da região e para seguirem caminho. Com sorte, talvez com sorte, haja um arroz de polvo da Mafalda, mas não precisa. O pequeno-almoço é à antiga. Faustoso, das casas faustosas.

O país corre para o mar. E este verão corre pouco se só viajarmos à roda do quarto, deixando os rooms, os zimmers e chambres de Caminha a Viana do Castelo, de Aveiro à Nazaré, da costa vicentina ao Algarve vazios. Podemos nós, no que pudermos da carteira, ir ocupando e viajando à descoberta desses pedaços todos de que somos feitos. A gente precisa. E a nós faz-nos bem.




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