Crónica de Carina Fonseca: falar com toda a gente (e saber ouvir)

(Fotografia de Igor Martins/GI)
As conversas mais interessantes são, no fundo, uma troca: eu partilho algo sobre mim, tu partilhas algo sobre ti, e no fim reduzimos distâncias, qualquer que seja o caminho a tomar.

Se algo de bom o jornalismo me trouxe, foi a capacidade de sair da concha e falar com toda a gente, da pessoa que passa na rua ao artista que admiro e ainda me faz corar. Como tantas outras coisas, é algo que se treina até virar gesto natural, e traz frutos. No caso, uma maior capacidade de nos pormos no lugar do outro, saber escutar e retirar daquela interação algo útil, enriquecedor ou somente prazeroso. Ao meter conversa com desconhecidos fora do trabalho, o pior que pode acontece é levar uma resposta seca ou ser ignorada, como quando cumprimentamos alguém que não responde, ou seguramos uma porta por gentileza e nos tratam como invisíveis. Mas não é muito usual, sobretudo no Porto.

Nas minhas deslocações pela cidade, tanto falo com o motorista do autocarro como com o segurança do edifício onde me pareceu ouvir um gato miar aflito, ou com o homem ao telefone à porta da oficina (e acabo por conhecer o seu papagaio de estimação, uma fêmea que é cega e replica o ladrar dos cães). Pergunto o nome aos jogadores em campo, como se fôssemos crianças no recreio, e assim espero que seja a vida, pelo menos a intervalos regulares: um sítio onde encontrar algum alívio e alegria, cabeça e corpo em dança livre.

Nas situações do quotidiano em que escolho interagir em vez de me isolar, pedir esclarecimentos em vez de ficar na dúvida, coleciono pedaços de histórias alheias. Levo para casa ensinamentos, curiosidades, lembretes e frases específicas. Adoro a matéria-prima interminável que é a língua, ver como se constrói diferentes puzzles com as mesmas peças, como as palavras em certas bocas podem soar a poesia ou ter muita graça. Continuo a anotar no telemóvel coisas que ouço por aí . Há não muito tempo, uma mulher comentava, num quiosque: “A minha cabeça está em banho maria; já passou o banho maria, está na panela de pressão”. E, numa reportagem, alguém me passou dois ditos do avô: “ovelha que berra, bocado que perde” e “barriga de pobre antes rebente que sobre”.

Enterneço-me perante desabafos e expressões assim, porque me confirmam, uma e outra vez, que somos humanos, temos estados de alma, necessidades e medos comuns; existimos para lá dos ecrãs, pedestais, imagens construídas. Gosto de conhecer gente e ver estilhaçar-se a crosta de gelo fino que nos separa. Fico a apreciar mais quem revela algo de si, das suas experiências, lutas ou fragilidades. Quantas vezes uma partilha dessas lança nova luz sobre quem temos à frente? E sobre nós.




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