Crónica de Carina Fonseca: êxtase de viver

Fotografia: Pexels/DR.
Por gostarmos muito de muitas coisas, eu e o André Rosa formamos a equipa “êxtase de viver”, na Evasões. Rimo-nos e enfiamos a carapuça: mesmo em tempos tenebrosos, encontramos brilho - à mesa de casa ou num passeio higiénico pela floresta.

Na Evasões, eu e o André Rosa formamos a equipa “êxtase de viver”. Fomos assim batizados pela editora Dora Mota enquanto selecionamos os nossos favoritos do ano 2020, entre pratos, restaurantes, lojas ou passeios ao ar livre, por gostarmos muito de muitas coisas. Apreciei tanto o nome, que faço questão de o recuperar com frequência nas nossas interações. Para mim, não há melhor elogio que o do entusiasmo e da intensidade.

Uma crónica com este título pode parecer deslocada, face aos tempos tenebrosos que vivemos. Quando andamos embrulhados em medos, turbulências, incertezas. Mas o ânimo e a curiosidade aplicados às mais pequenas coisas permitem-me ir fazendo o caminho até dias mais radiosos. Não consigo encontrar outra maneira, eu, que tenho, à data em que escrevo, o privilégio de ter saúde, trabalho e um teto sobre a cabeça – tantos clichés, e tão verdadeiros.

Desde miúda que vou buscar força e inspiração às artes. Que ninguém duvide de como é essencial a cultura: é ela que abre raios de luz no maior dos desconsolos, que chora connosco ou nos puxa para a pista de dança. Por agora, é tempo de recolhimento. E, apesar do desânimo de tantas horas, procuro ver brilho no que está em volta e no que haverá para fazer, quando a grande tempestade passar. Ver a exposição de Louise Bourgeois em Serralves; conhecer a Shelby, a cadela que um amigo adotou; e, claro, abraçar, abraçar, abraçar.

Neste segundo confinamento, perto da natureza, vou equilibrando a leitura com passeios higiénicos na floresta. Tenho andado de bicicleta e visto tudo mais devagar. Se assim não fosse, não me teria rido quando, ao estacionar a bicicleta à porta do supermercado, um senhor me atirou: “Vais com as rodas a bater no chão! Vais assim para casa?”; nem teria ouvido o desabafo cómico (perdoem-me os mais sensíveis) do homem que arrumava as compras no carro enquanto dizia “Putain! 150 euros!”; nem teria reparado na “Rua do Júlio” (quem será o Júlio?), ou no leão à porta de uma casa, com máscara cirúrgica, rodeado de santas e figuras de louça. Enquanto pedalava de volta ao ninho, dei por mim a concluir, aliviada, que conservava o êxtase de viver. Que era tão interessante fazer um roteiro longe como passear perto de casa.

Nem de propósito, no último livro que li, “A biografia do silêncio”, escrevia Pablo d’Ors: “Graças às minhas ‘assentadas’ de meditação, descobri que tudo sem exceção pode ser uma aventura. Escrever um romance, cultivar uma amizade, fazer uma viagem… é uma aventura. Mas também dar um passeio pode ser uma aventura, e ler um conto ou preparar a ceia. Na realidade, um qualquer dia, até o mais cinzento, é para quem souber vivê-lo como uma aventura incomensurável.”

Perguntei ao André o que andava a fazer para manter o alento. Respondeu que encomendava sushi, piza ou comida mexicana uma vez por semana, via filmes e séries e doseava os níveis de exposição às notícias. Cada um a seu jeito, rumo à alegria possível. Voltaremos a dançar.




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