Crónica de Carina Fonseca: batatas fritas com ovo estrelado

(Fotografia de Gerardo Santos/Global Imagens)
A infância define tanto - até os sabores pelos quais havemos de salivar vida fora, mesmo que se afastem dos nossos ideais alimentares do momento. Foi bom, e há de continuar a ser.

Nem sempre valorizei a comida como merece. Confiava nela para me manter viva e funcional, tirava prazer de barras de chocolate devoradas à velocidade da luz, era capaz de comer três pêssegos seguidos à dentada, a generalidade dos pratos sabia-me bem, mas não parava para apreciar a sua riqueza. Um pouco como quando, imberbes, damos como garantida uma certa eternidade – nossa e dos nossos. A comida também parecia estar lá sempre, até que foi deixando de estar, pelo menos alguma dela, pelo menos com igual sabor, à medida que quem a confecionava ia desaparecendo, ou as circunstâncias mudando.

O meu interesse verdadeiro pela alimentação chegou tarde, muito graças à “Evasões”. E tem crescido à medida que a olho de diversos prismas: memória, cultura, saúde, vida social. Há muitas partes de nós por nutrir, do coração à cabeça, tanto que festa é sinónimo de mesa cheia. Agora, saboreio com curiosidade e atenção, embora ainda com demasiada pressa. Admiro os mágicos dos pães e dos doces, das cozinhas tradicionais e do mundo. Gosto de pensar e falar sobre comida, porque tem sempre histórias agarradas e significados bastante pessoais.

Recentemente, uma conjugação de fatores levou-me àquele que é, afinal, o tema desta crónica: no corredor da morte, o que escolherias como última refeição? Um jejum de 12 horas antes de fazer análises coincidiu com uma sobredosagem de episódios da série “Como defender um assassino” e a leitura do livro “A cook’s tour – Em busca da refeição perfeita”, publicado por Anthony Bourdain em 2001, bem antes da sua partida prematura. Ao evocar o “jogo da última refeição”, a sua experiência com chefs amigos, o autor conclui que as respostas são “invariavelmente simples” e fruto das lembranças de cada um.

Pude comprová-lo ao lançar a pergunta a três pessoas próximas, que me disseram, sem qualquer hesitação: lagosta grelhada; sardinhas assadas com pimentos e uma fatia de pão alentejano por baixo; e bacalhau cozido com batatas, feijão verde e muito azeite, com sabor a casa. Também a minha resposta veio rápida e cristalina, contrariando a habitual indecisão nos restaurantes. Batatas fritas com ovo estrelado, tudo feito ao lume, numa frigideira enegrecida pelas chamas (a da minha avó). Arroz-doce quente, rapado do tacho (o da minha mãe). E pão fresco com manteiga cortada à fatia e um salpico de sal, como se o ar da praia de infância entrasse de súbito pela janela. As três opções. Vou assumir que tenho direito a entrada, prato principal e sobremesa.




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