Crónica de André Rosa: Outono e outubro

(Fotografia: Matthias Groeneveld/Pexels)
Desde miúdo que me lembro de ouvir a minha mãe exultar com o cheiro a terra molhada. Ainda hoje, quando sinto este perfume brotar da terra, exclamo e sorrio como uma criança.

É como se a terra abrisse os seus poros mais sensíveis, inspirasse a água das primeiras chuvas e expirasse profundamente, libertando o tão caraterístico odor. Este fenómeno está cientificamente estudado. Chama-se petricor – junção da palavra grega “petra” (pedra) com “ichor”, o líquido que corre nas veias dos deuses, segundo a mitologia grega – e deve-se a um conjunto de bactérias que decompõem a matéria-orgânica, produzindo uma molécula, a geosmina (ou “cheiro da terra”, em grego).

Quando o tempo ameaça queda de chuva e o ar no solo se torna mais húmido, a produção de geosmina aumenta. No momento em que as gotas atingem o solo – especialmente em superfícies porosas como o alcatrão ou terrenos em secura prolongada -, minúsculas bolha de ar ascendem à superfície e rebentam, libertando aerossóis. São eles que espalham o cheiro a terra molhada pelo ar, um perfume que é tão intenso quanto fugaz e que em alguns momentos antecipa mesmo a queda de precipitação. A minha memória olfativa associa-o sempre a esta época do ano, em que o verão dá lugar ao outono.

Numa altura em que já nada é como antes e as estações meteorológicas cada vez mais se aglutinam, é reconfortante ter memórias olfativas a que nos agarrar. Os raros momentos em que a terra liberta o aroma da sua superfície molhada lembram-nos que o verão já lá vai – com tudo o que teve de quente, de livre e de bom – e que o outono chegou com tudo o que tem de ameno, de aconchegante e de promissor. As folhas caducas forram a estrada e a calçada com um manto crocante de tons secos; a chuva pinta as janelas das casas e embala o sono; e começa a cheirar a castanhas assadas em cada bairro.

A descida gradual das temperaturas e do número de horas de luz por dia, também marcas desta estação, convidam a um maior recolhimento, que todos desejamos orgânico e não imposto por força de outras circunstâncias. A verdade é que hoje, dia 1 de outubro, se assinala uma importante fase de transição rumo à vida que conhecíamos antes da pandemia. Essa transição será tanto mais suave e bem-sucedida quanto maior for o amadurecimento com que todos a praticarem. O meu desejo é que este outono traga a todos esta capacidade de reflexão e de temperança, em prol de futuros outonos repletos de liberdade.




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