Crónica de Ana Luísa Santos: Memória olfativa

(Fotografia: DR)
Diz-se que o olfato é o sentido humano mais forte dos cinco que temos. Acredito que seja também o mais menosprezado. Um emprego em part-time na faculdade mostrou-me muitas das suas maravilhas.

Há muitas formas de viajar. De carro, de comboio, de avião, num álbum de fotografias, pelos pensamentos, ao ler um livro. Uma das minhas maneiras preferidas é pelos cheiros, que me trazem recordações várias, e “memórias” de lugares onde nunca estive.

Há momentos em que uma rápida inspiração da fragrância adocicada das flores da minha rua me leva imediatamente para as férias de verão que fazia no Algarve, em miúda. O cheiro a terra molhada faz-me lembrar o outono, domingos, e a época do regresso às aulas, e o cheirinho de pão torrado pela manhã relembra-me tempos despreocupados. O aroma a bolos a cozer no forno há de ser, para sempre, o cheiro do amor. De facto, há alguns estudos que apontam para o olfato ser o sentido mais conectado à memória, e eu tendo a concordar.

Por vezes, estou a fazer a minha vida e, do nada, um cheiro faz-me ficar inquieta. Tenho de o assimilar e, como quem faz um “rewind” mental, descobrir nas minhas memórias mais profundas o que é que ele me faz lembrar, de onde é que eu conheço, e associá-lo a algo para serenar.

O aroma dos bolos a cozer no forno há de ser para sempre o cheiro do amor.

O gosto pelas sensações do olfato não é de agora, mas intensificou-se quando fui promotora de perfumaria, durante quatro anos, enquanto andava na faculdade. Aprendi muito sobre notas de topo, de coração e de base, ou seja, cheiros específicos que representam a evolução da fragrância ao longo do tempo, sobre o nunca esfregar o sítio onde se pulverizou o perfume mas, mais importante, aprendi sobre pessoas. Sobre como escolhem um perfume, em que se baseiam para o fazer e o que lhes diz determinado cheiro. Também aprendi que usar uma determinada fragrância é passar uma determinada mensagem.

Comecei a interessar-me seriamente sobre este assunto, a tomar atenção às notas dos perfumes, conseguindo, pouco depois, adivinhar aquilo que as pessoas que passavam por mim na rua usavam. Li “O perfume”, de Patrick Süskind, e fiquei fascinada.

Por essa altura descobri o site Fragrantica, que se apresenta como a “enciclopédia online de perfumes”. Além de novos lançamentos, o site apresenta um perfil para cada perfume, com as opiniões dos consumidores, e houve uma que me marcou até hoje. Entre outras palavras, a utilizadora escreveu que determinado perfume era “extremamente complexo. É uma fragrância de ideias, de impressões. Tem um elemento de tristeza, uma ideia de flores que ficaram num vaso demasiado tempo. Uma ideia de decadência lenta. Folhas apodrecidas no chão. […] Também há um elemento de iminência. Uma tempestade que se aproxima. A promessa de chuva no ar”. E eu, que nunca tinha sentido uma fragrância desta forma, fiquei maravilhada. Tornei-me mais exigente nos meus perfumes, e passei a sentir com mais interesse os cheiros que vêm no ar. A guardá-los, para me inspirar, e para regressar a determinado momento. Até ao Natal com a canela, à cantina da minha escola com a sopa de batata, e ao conforto de certos braços com águas de colónia cítricas.




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