Crónica de Ana Luísa Santos: Abrandar para recomeçar

(Fotografia; Pixabay)
Não ter planos para futuro fez-me pensar no passado. E relembrar pessoas e momentos que me marcaram. Hoje, confinada em casa, sinto uma espécie de inveja de uma idade em que não sabia o que era uma pandemia.

Por vezes, íamos à “casa”. Quando queríamos aventura e os intervalos das aulas ainda se chamavam recreio. Não sei precisar que idade teria, talvez uns 13 anos. Já não éramos propriamente pequenos, mas a emoção mantinha-se sempre que os planos para aproveitar aqueles preciosos minutos de tempo livre incluíam uma incursão à casa abandonada, escondida nas traseiras do Colégio de Gaia. A casita, cujo terreno onde se encontrava desapareceu para dar lugar a uma auto-estrada, era pequena e térrea, não apresentava nada de assinalável. Ainda assim, havia uma aura de mistério que a rodeava, provavelmente por não sabermos absolutamente nada sobre ela e porque já nos tinha sido pedido que não fossemos para lá. Tudo isto aguçava o nosso interesse e, de tempos a tempos, lá íamos nós matar a curiosidade, discretos mas inquietos. Nunca nada se passou. Nenhuma voz ecoou, nenhum objeto se mexeu. Mas a preparação para lá ir, agregada à proibição, chegaram para criar a memória e gravá-la até hoje. À semelhança da tarde em que, munidos de algum nervosismo, velas e peças de Scrabble, decidimos jogar o Jogo do Copo, no corredor, ao lado da sala de EVT. Ou quando, beneficiando do pouco atrito do piso axadrezado paralelo ao refeitório, nos punhamos a correr de um lado para o outro, aproveitando o embalo para deslizar nos últimos metros.
Fui muito feliz nos quase dez anos em que o Colégio de Gaia foi como uma segunda casa para mim, e nos seguintes, passados na Escola Secundária António Sérgio. Nem tudo foi bom, mas a nossa capacidade para esquecer os momentos maus permite-me recordar estes anos com um sabor mais doce do que amargo.
Não conseguir olhar para um futuro claro há meses, nem fazer planos para os tempos que se avizinham, tem sido um convite a olhar para trás. A fazer uma pausa, antes de voltar a arrancar. E, nessas minhas viagens ao passado mentais vejo que, mesmo no meio de todos os percalços, as coisas correram bem. E mesmo considerando-me introvertida, como a minha colega Carina – que, aliás, escreveu no início do confinamento sobre precisamente isso -, e gostando de estar em casa, as minhas melhores recordações incluem sempre pessoas. Agora, crio memórias como posso, dentro de quatro paredes. Tento aproveitar cada dia da melhor forma, mal posso esperar por um cheirinho da vida que tinha antes de março. E não nego que, pontualmente, também gostava de voltar à vida leve e despreocupada que tinha quando andava na escola, mas já dizia Charlotte, a personagem interpretada por Scarlett Johansson, no filme Lost in Translation: “Let’s never come here again because it would never be as much fun”. Tem alguma razão.




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