Crónica de Ana Costa: o espírito do Natal presente

(Fotografia: Pexels/DR)
Onde habitualmente se sentavam dois, naquela noite acomodava-se uma prole a rondar as duas dezenas, e daí a nada as três, sob a vista ternurenta dos chefes da família. Aquela grande festa haveria de durar para sempre.

Há coisas que nunca hão de faltar numa ceia de Natal. Muitos dirão o bacalhau. E talvez o bolo-rei. O vinho do Porto e as rabanadas. O calor da lareira, o aroma doce da aletria, o estalar do azeite sobre as batatas. Um copo de vinho tinto tombado na toalha bordada com azevinhos, um burburinho animado, sob o reflexo intermitente das luzes do pinheiro. Ou a ocasional desavença a que são propícias as reuniões familiares. E a sempre renhida partida de sueca. O quadro repete-se, mais ou menos integral, todos os anos. E ao mesmo tempo, sem que nos demos conta, há pequenas mudanças, que a distância do tempo torna gigantes.

Guardo uma imagem muito clara dos natais da minha infância, com uma nostalgia quase dolorosa, a que atribuo o auge do aconchego familiar. A pequena cozinha dos meus avós maternos a abarrotar de gente e a excitação de rever os primos; um rumor contínuo, rasgado por gargalhadas sonoras, e um calor húmido, que fazia as janelas ressoar: uma mistura de vapor das panelas a ferver no fogão a lenha, numa ponta da sala, com o fogo a devorar as achas na lareira, no outro extremo.

A mesa parecia alongar-se infinitamente e os bancos brotavam debaixo dela que nem cogumelos. E onde habitualmente se sentavam dois, no máximo meia dúzia – quando os netos vinham aos cozinhados da avó -, naquela noite acomodava-se uma prole a rondar as duas dezenas, e daí a nada as três, sob a vista ternurenta dos chefes da família, do alto dos seus setenta e muitos anos. Ao olhar de uma criança, aquela grande festa haveria de durar para sempre.

Afinal, a mesa não esticava sem limite. E à falta dos pilares que originaram todos esses ramos, a árvore foi-se quebrando em núcleos familiares mais reduzidos, e a festa reformulou-se em reuniões mais pequenas, como rebentos deitados à terra, que o tempo fará crescer de novo.

Há vários anos que o meu Natal não tem mais de oito elementos, e essa magia de uma celebração numerosa desvaneceu-se. A quadra tem agora outro sabor. Nem mais nem menos doce. Porém, diferente. Ao olhar adulto vejo-a também mais cerimonial, envolta nos planos de quem vem e quem não vem, ofuscada pelas preparações e compras de presentes, desbotada pela saudade dos que perdemos. Mas se há coisa que os dois últimos anos nos mostraram é que nem mesmo essa reunião anual podemos dar por garantida. E que a noite perde todo o brilho se não a pudermos viver com os nossos.

Alheio a tradições, rituais ou mudanças, cada Natal presente oferece uma oportunidade de valorizar o agora, por mais imperfeito que o achemos. É neste momento, ofuscado pelas recordações empoladas do passado, que se podem formar as mais belas memórias do futuro. Há coisas que nunca hão de faltar numa ceia de Natal. Muitos dirão o bacalhau. E talvez o bolo-rei. Eu digo as pessoas com quem a partilhamos. Muitas ou poucas. E essas sim, são o maior presente de todos.




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