Crónica de Ana Costa: Amanhecer em Istambul

(Fotografia de Konevi/Pexels)
O chamamento do almuadem desperta a grande metrópole, mergulhada numa paz reconfortante, antes de tornar-se na Istambul caleidoscópica, inquieta e sedutora que é.

Ao raiar do dia, sob uma claridade frouxa que desponta da madrugada, Istambul acorda como um gato sonolento, desses que lhe enchem as ruas. Passa das quatro da manhã. E num quinto andar no bairro de Sultanahmet, na cidade velha, entra pela janela entreaberta um som monocórdico que se confunde nos sonhos. O chamamento do almuadem chega da mesquita mais próxima a apelar à primeira oração do dia, com um pregão melancólico que desce dos altifalantes do minarete e ecoa pela cidade. A ele acorrem os fiéis e com ele desperta a grande metrópole, mergulhada numa paz reconfortante, antes de tornar-se na Istambul caleidoscópica, inquieta e sedutora que é.

A azáfama começa com o abrir das portas do comércio de rua, a preparação das montras e bancas, e o trânsito desenfreado. A meio da manhã já a cidade se transformou num grande mercado ao ar livre, envolvido numa profusão de cheiros, cores e sons que se misturam num caos organizado por dois princípios: o dever de culto e o do negócio.

Istambul cheira a perfume de rosas, castanhas assadas, especiarias, suor e urina de gato. Afinal de contas, são os reis da cidade, e serão poucas as ruas que não servem de morada a uma pequena colónia. Dormem em cestos de souvenirs à porta das lojas, em cima de cadeiras de esplanada e, ocasionalmente, até no colo de algum turista que não tenha resistido a fazer festas num dos célebres gatos de Istambul.

A paleta de cores com que se pinta a cidade faz-se de bandeiras vermelhas estendidas nas fachadas, montras recheadas de delícias turcas – espécie de gomas coloridas -, o chá acobreado que chega à mesa no fim de todas as refeições, o pistácio, os feijões e as azeitonas, que saltam à vista nos frenéticos mercados que se lançam para a rua. E ainda os belíssimos mosaicos e pinturas da Mesquita Azul e da Hagia Sophia, imponentes, frente a frente, e apenas separadas por um parque ajardinado, na Cidade Velha, onde se misturam influências culturais dos muitos impérios que por ali passaram. Não lhes ficam atrás os da Mesquita Yeni, já perto da Ponte Gálata, cujo tabuleiro inferior é corrido a restaurantes onde, tal como acontece por toda a Istambul, um funcionário à porta chama para dentro quem passa, prometendo ter a melhor oferta da cidade. “Lady, come see. Best price”, diz o primeiro. O discurso desenvolve-se nos moldes da insistência e repete-se porta sim porta sim com a astúcia de um vendedor nato, que acaba muitas vezes por convencer pela exaustão. No seu livro “O Grande Bazar Ferroviário”, Paul Theroux descreve a chegada a Istambul no Expresso do Oriente com “o choque e a alegria de ser atirado de cabeça para dentro de um bazar”. Revejo-me nessa comparação em todas as ruas da cidade, muito antes de entrar no Grande Bazar..

O que Istambul retira em paz de espírito no seu comércio ardiloso, retribui no silêncio e aquietação dos locais de culto, e ambas as faces da cidade são igualmente sedutoras.

Ao fim de três dias, entramos no autocarro noturno para Nevşehir a mastigar um obrigado em turco, recém aprendido: “Teşekkürler”. No dia seguinte, ao cair da noite sobre Göreme, volta a ouvir-se o muezim a chamar para a oração. O som ecoa pelo vale, no coração da Capadócia, e sentimo-nos novamente mergulhados numa paz reconfortante.




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