Crónica: as curvas do palato

O maranho da Beira Baixa. (Foto: DR)
Em criança, já me inclinava para a cozinha robusta, do cabrito assado à caldeirada de bacalhau. Ter avós beirãs com dedos habilidosos dá nisto. Aquilo a que torcia o nariz, a idade tratou do assunto.

Do junho a setembro, religiosa e invariavelmente, todos os caminhos iam dar à Beira Baixa. Se os verões passados em duas pequenas aldeias nos arredores de Castelo Branco me ensinaram o que é a liberdade nas suas mais variadas facetas – do nunca olhar para os ponteiros do relógio aos joelhos e mãos cobertos de terra ou a portas de casa raramente trancadas – também é certo que foi este o palco que serviu de escola ao meu então jovem palato.

Enquanto a alimentação em Lisboa era sempre mais eclética e banal ao longo do ano, as férias grandes de verão no interior beirão eram sempre prenúncio e sinónimo de cozinha robusta, intensa e apurada à mesa. Com ossos, cartilagens, espinhas e tudo o que tem direito. O tipo de cozinha que aperfeiçoa em sabor tudo o que possa eventualmente descurar no olhar, daquela que tem pelo na venta e não pede licença para entrar. O tipo de gastronomia, de resto, que mais aprecio.

Grande parte dos cachopos de hoje lambuza os dedos ao pensar em hambúrgueres, pizas, bitoques e batatas fritas cobertas de algum ketchup duvidoso. Atenção, eu também o fiz em criança e jovem – hoje estou mais comedido neste campo. Mas aquilo que, realmente, me fazia salivar na infância eram alguns dos pratos mais tradicionais do receituário local, sempre irrepreensíveis nas mãos – tão habilidosas como gastas pelo trabalho árduo no campo e nas hortas – das avós Piedade e Maria. Falo de delícias como a caldeirada de bacalhau, cabrito e coelho assado no forno com esparregado, o peixe miúdo de rio que se servia frito com arroz de tomate ou de grelos, ou o feijão-frade com salada de almeirão, esta última também o acompanhamento perfeito para a carne de vaca fresca e cozida, que se soltava do osso sem qualquer esforço.

Ainda assim, torcia sempre o nariz a dois dos grandes ex-líbris da Beira Baixa, a doce tigelada feita em caçarola de barro e o clássico maranho (um enchido com picadinho de cabra, chouriço, presunto, hortelã e arroz, que recheava uma tripa bem lavada do porco). O facto de ser o único em toda a família a não gostar de nenhuma destas duas iguarias fazia-lhe olhar para estas como uma espécie de handicap. Gostava de poder apreciá-las como todos o faziam nas mesas cheias de fim de semana. Um pouco como acontecia com o arroz-doce, que nunca podia ser polvilhado com canela para o menino poder comer – mas isso é outra história. Felizmente, com a idade e o amadurecimento das papilas degustativas, isso mudou. Hoje, dêem-me um bom maranho e uma fatia de tigelada caseira e chamo-lhe um dia feliz. Engraçadas, estas curvas do palato. E da vida.




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