Crónica de Nuno Cardoso: A tradição do comércio de rua

Casa Pereira, que fechou há três anos no Chiado. (Fotografia de Filipa Bernardo/GI)
Apesar do aparente crescimento do comércio de rua com a chegada da pandemia, a verdade é que mais de 150 lojas tradicionais já fecharam portas, só em Lisboa.

Por estes dias, ao calcorrear a Rua Garrett a ritmo apressado – porque a paciência para esta zona da capital já não é a mesma, verdade seja dita -, desacelerei o passo, parei e voltei para trás. O hábito de ir à Casa Pereira comprar amêndoas e chocolates na época pascal era tal que o meu inconsciente ainda me fez ir até ali num impulso, como muitas vezes ia, mesmo estando eu careca de saber que esta casa quase centenária – com nove décadas de legado – encerrou portas há dois anos, dando lugar hoje em dia a um espaço de pastéis de nata.

Há moradas quase que imortais na cidade, que ganham estatuto intemporal na nossa memória. Mesmo quando desaparecem. A porta 38 da Rua Garrett será sempre a antiga mercearia onde sempre fui bem recebido pela dupla de sempre atrás do balcão, António e José, pai e filho, que deixaram o negócio por “cansaço”, aos 92 e 64 anos, e por falta de quem os quisesse substituir no seio familiar.

Durante o regresso a casa no metro, vinha a pensar no estado moribundo de grande parte do comércio tradicional de rua. Veio-me à cabeça dois estudos publicados em 2020, que mostravam a forma como a chegada da pandemia influenciou a ligação dos portugueses com os negócios locais. Um destes, da autoria da Intrum em dezembro, dizia respeito às compras de Natal, e indicava que 76% dos inquiridos pretendia fazê-las no comércio de rua, uma média muito superior à europeia, que se ficava nos 59%. Outro, divulgado pela Mastercard em outubro do mesmo ano, perante uma amostra de 13 mil pessoas, mostrava um crescimento deste setor e explicava que 82% dos portugueses inquiridos pretendia continuar a fazer as suas compras nas lojas de rua. Entre as vantagens enumeradas estavam a conveniência (49%), as menores filas face às grandes superfícies (51%) e a ausência de deslocações (50%). No geral, 84% da amostra afirmou preferir comprar a alguém que já conhece e 79% referiu nutrir maior confiança nos lojistas locais.

Há dois anos, o natural receio face às multidões quase que fazia adivinhar um ponto de viragem em torno das lojas tradicionais, quase como um empurrãozinho que faltava para se entrar numa nova era de fidelização em relação a estes espaços. Mas parece-me que não terá sido bem assim. Ainda há semanas, a Lusa noticiava que mais de uma centena e meia de lojas históricas já encerraram em Lisboa. Um número especialmente expressivo se pensarmos que se trata de metade dos espaços pré-selecionados como Lojas com História, programa da autarquia que pretende proteger, apoiar e incentivar algumas das casas mais antigas da cidade, das sapatarias a joalharias, tabernas, drogarias e chapeleiros. A Casa Pereira foi uma delas.

Felizmente, algumas conseguem aguentar-se de boa saúde, como já comprovei em variadas reportagens para a Evasões. Casos da mercearia Manteigaria Silva, da Caza de Vellas Loreto ou da ourivesaria tricentenária Leitão & Irmão, por exemplo. Infelizmente, ainda há muito caminho a percorrer neste sentido. Até lá, cada um vai fazendo o que pode. Eu continuarei a limitar as idas aos grandes centros comerciais ao estatuto de “última alternativa”. E pensar que há quem faça disto passatempo de fim de semana…




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