Tiago Bonito: «Vamos festejar a estrela Michelin à mesa»

O chef Tiago Bonito chegou ao Largo do Paço, que já tinha uma estrela Michelin, em abril. Vindo de Lisboa, conseguiu que o restaurante de Amarante voltasse a conquistar esta distinção com uma carta que tinha apenas duas semanas.

Como foi recebida a notícia da atribuição da estrela Michelin ao Largo do Paço?
Recebemos a notícia de braços abertos, foi um reconhecimento do nosso trabalho ao longo deste ano. Acho que estrela já está no ADN da Casa da Calçada, mas ontem de manhã falei com a minha equipa e disse que somos onze, como uma equipa de futebol, e jogamos todos no mesmo campeonato. Nada acontece sem essa entrega e cumplicidade da equipa e eu só tenho a braçadeira de capitão. Disse que esse era o nosso espírito, acontecesse o que acontecesse. Temos que manter o foco naquilo que estamos a trabalhar em equipa, que é a nossa identidade – que é o nome de um dos nossos menus da nova carta. A identidade da Casa da Calçada, da cozinha portuguesa e do chef que aqui trabalha. Temos sempre o foco na consistência, na qualidade do produto e na qualidade do serviço.

Mas estava a prepará-los para a desilusão de não manter a estrela Michelin.
Sim, tínhamos que estar preparados para tudo. Além desse nosso foco na consistência, tínhamos esse segundo campeonato que era continuar com a estrela Michelin, tínhamos que nos preocupar com as duas coisas. Mas eu só cheguei aqui há sete meses e dez dias depois tive que fazer uma nova carta, constituir equipa e demora algum tempo até a equipa compreender a minha filosofia, até criar confiança e até conhecer bem os produtores locais. Por isso, nem apresentei essa primeira carta.

E foi com essa primeira carta que conquistou a estrela?
Recebi duas inspeções da Michelin quando essa primeira carta estava implementada não tinha feito ainda duas semanas. Foi um período muito difícil para mim, a trabalhar 24 sobre 24 horas, a estar muito ao fogão com a equipa ao lado. Foi mesmo complicado. Não tinha tido ainda tempo de testar produtos e experimentar receitas como tive agora, com esta nova carta que lançámos.

Fala muito da sua família, da influências deles na sua cozinha. Como reagiram à notícia?
Falei com os meus pais e com a minha mulher, que têm que partilhar estas horas boas, não só as horas más. Vamos celebrar com gastronomia, claro, certamente que vamos festejar à mesa.

A atribuição da estrela vai mudar alguma coisa no Largo do Paço?
Não vamos fazer mudanças, vamos continuar com a nossa consistência, com o nosso foco na cozinha contemporânea inspirada na cozinha tradicional portuguesa.

Mudou-se de Lisboa para Amarante, como é que isso se refletiu na sua cozinha?
Vim de Lisboa para me aperfeiçoar, porque lá a rotina era muito mais acelerada, havia muitos eventos, a estrutura do hotel [Pousada de Lisboa] era muito maior. Vim para ter mais tempo para explorar novos produtos e técnicas, novas ideias, para aperfeiçoar pratos. Vim em busca de novos projetos, em ir mais além. Porque Lisboa é uma cidade muito competitiva, onde servíamos muitas refeições, chegavam a ser 120 por dia enquanto aqui no máximo servimos 60. A produção é toda fresca, começamos na cozinha de novo ao almoço e ao jantar, agora há uma consistência e isso é muito importante para mim. Ter um produto com uma consistência extraordinária, poder controlar tudo de perto.

Ter mais liberdade para criar pode explicar o facto de alguns chefs terem preferido sair das grandes cidades?
Tem mais a ver com mentalidade, porque hoje em dia os grandes chefs não estão associados a grandes hotéis, mas a grandes restaurantes. Nos melhores 50 restaurantes do mundo, os proprietários são os chefs ou investidores por trás deles e há pequenos restaurantes em Lisboa com 20 ou 30 lugares. Têm um foco. Mas a questão aqui é que o cliente tem que se deslocar para vir a Amarante, tem que ser um gastrónomo, alguém com gosto por comer. E se há uns anos havia dois restaurantes com estrela Michelin no Porto, agora há cinco. Temos que ser diferenciadores para que os clientes venham a Amarante e o que queremos proporcionar é o despertar das memórias.

Acha que um bom chef precisa de ter essas memórias diretas, nomeadamente do campo, para criar uma cozinha consistente?
Um chef não tem que ter, mas o cozinheiro tem que ter. Alguém tem que ter, porque tudo o que vai para o prato vem da terra e das origens. Alguém tem que trazer esse conhecimento. Eu vivi no campo e aquilo que a minha mãe e o meu pai me passaram estou a passar aos meus cozinheiros. Alguns têm memórias como eu, outros não, tenho um que nem é português. Procuro usar os nossos sabores para contar histórias, como o bacalhau de cura amarela para falar das salgas e as especiarias no foie gras por causa dos Descobrimentos. Uso também a receita de leitão com mais de cem anos, do meu avô. Uso tudo o que me orgulha como português, a nossa gastronomia é muito rica para um país tão pequeno. Só falta que a gastronomia portuguesa se torne algo político.

O que quer dizer com isso?
Se tivéssemos mais poder, podíamos ir mais além-fronteiras. Fazer como os nossos vizinhos espanhóis ou franceses que tiveram apoio do Estado e conseguiram impulsionar-se. Neste momento estamos a crescer e a profissão de cozinheiro já não é mal vista, todos querem ser cozinheiro.

Querem ser chefs
Eu já não digo essa palavra, toda a gente quer ser cozinheiro porque teve uma ascensão muito grande, por todo o mediatismo que foi criado e também pelas influências que vêm de fora, como o Masterchef Austrália. Temos muito bons projetos em Portugal, estamos no bom caminho, só nos falta apoio estatal para poder representar o país – como cozinheiro, eu estou a representar as memórias e os sabores do meu país. Às vezes, queremos fazer iniciativas e não conseguimos por falta de verbas, mas acho que isso vai mudar.

Daqui a uns anos, o que espera que seja o seu legado?
Espero ter orgulho em ter formado profissionais como outros me delegaram conhecimentos a mim. Esta é uma vida de muita dedicação e sacrifício, perdemos amigos e família, não é um mar de rosas. Às vezes, deito-me às três da manhã ou não me deito porque ainda não cheguei onde queria. Sou perfeccionista e teimoso, não sei se são defeitos ou qualidades.

 

Novidades em Amarante

A carta de inverno do do Largo do Paço foi apresentada este mês e inclui dois menus de degustação que traduzem a biografia culinária do chef Tiago Bonito e a sua homenagem aos produtos locais e sazonais. São eles o menu Identidade (145 euros) e o Caminhos (110 euros, ambos os preços sem vinhos). O Largo do Paço fica em Amarante, no largo homónimo, no hotel Casa da Calçada.

 

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