Quem são os pais da cozinha moderna portuguesa?

O Dia do Pai foi pretexto para estendermos o conceito de paternidade a algo que nos é querido e familiar. Quem foram os homens, sem qualquer intenção sexista, que trocaram as voltas à cozinha portuguesa e a fizeram evoluir para aquilo que hoje, nós e o mundo, tem cada vez mais como certo?

«A gastronomia moderna tem pais infinitos, tantos quantos os que eu consiga contar», começa Paulo Amado, diretor da revista Inter Magazine e coautor do documentário A moda da cozinha. «Mas o [meu] primeiro elogio é dedicado aos que tinham algum papel nos anos 1950 e 1960 e que tiveram elevado impacte: por um lado, obrigaram a ir para fora quem não acreditava nas possibilidades de um país cinzento; por outro, foram contribuindo para manter alguns clássicos da nossa gastronomia ou para eternizar a cozinha francesa numa aceção mais direta — inclusive nos aportuguesamentos que fizemos dela e que hoje estamos convencidos ser nossos».

Teresa Vivas, que nos últimos tempos, enquanto consultora, tem ajudado a Associação da Hotelaria, Restauração e Similares de Portugal (AHRESP) a promover a gastronomia e os produtos portugueses dentro e fora de portas, parte de uma ideia similar: «Foi um movimento composto, não teve apenas uma abordagem. Existiu uma pressão internacional de França e, em especial, de Espanha e a cozinha portuguesa moderna foi beber muitas dessas influências — quer em técnicas quer em sabores. Depois não podemos esquecer os “gastrófilos”, pessoas comuns que apenas gostam de comer e que conseguiram contaminar todos os amigos com as suas escolhas.»

Se para Amado e Vivas a lista daqueles que importa referir é longa, e vai da cozinha aos críticos, aos jornalistas e até aos fotógrafos, há porém quem circunscreva essa paternidade a um momento e a um conjunto de intervenientes mais restritos, como é o caso de Duarte Calvão, coautor do blogue Mesa Marcada e diretor do festival Peixe em Lisboa. Para ele, «há três nomes que se destacam: Vítor Sobral, Joaquim Figueiredo e Miguel Castro e Silva». Isto porque «foram eles que, em finais da década de 1990 e início de 2000, romperam com o “tradicional” a que nós, portugueses, estávamos habituados e mostraram que, usando os nossos ingredientes e técnicas atualizadas, se podia fazer uma outra cozinha, também bem portuguesa».

O chefe Vítor Sobral no início de carreira

 

Não está sozinho. Os três nomes, praticamente unânimes no meio gastronómico nacional, são igualmente citados por Virgílio Nogueiro Gomes, gastrónomo e autor de vários livros da especialidade, para quem, a partir dos anos 1980, surgiu «uma nova época em que os chefes de cozinha, para além de grandes executores culinários, fizeram a sua intervenção na cozinha, criando um novo receituário e, mais importante, criando a sua marca».

Em Lisboa ressalta Sobral, Figueiredo mas igualmente Fausto Airoldi — a quem Calvão, por exemplo, reconhece uma influência mais limitada, a par de Luís Baena —, e no Porto evidencia os contributos quer de Castro e Silva quer de Hélio Loureiro: «Este grupo tomou atitudes profissionais que levaram a que o seu nome fosse a marca dos restaurantes onde trabalhavam, e fizeram a mudança de século», justifica.

Os pesos-pesados

Airoldi, nascido em Moçambique (o sobrenome vem do pai italiano) e atualmente a viver e a trabalhar em Macau, é logo o primeiro nome que ocorre a Paulina Mata, professora-coordenadora do mestrado em Ciências Gastronómicas da Universidade Nova e autora do blogue Assins e Assados: «Lembro-me das primeiras vezes que contactei com o seu trabalho, no início dos anos 1990, na Gare Marítima e depois na Comenda, no CCB. Um trabalho bem diferente do que era então comum em Portugal. Mais do que isso, o Fausto, com o Miguel Castro e Silva, foram pioneiros na introdução da técnica de cozinha em vácuo em Portugal. Uma técnica que mudou completamente a forma de trabalho nas cozinhas profissionais».

O chefe Fausto Airoldi passou pelo extinto restaurante Spot, no Teatro São Luiz

Amado, por sua vez, descreve-o «como um desenraizado com influências. O ar fresco do agora, já ele há muito o praticava», ao que Paulina reforça referindo o seu contributo para a organização da classe profissional — ele foi presidente durante cerca de duas décadas da Associação Cozinheiros Profissionais de Portugal — e para a internacionalização da nossa gastronomia — Airoldi foi diretor europeu da World Federation of Cooks Societies e organizou as primeiras equipas participantes nas Olimpíadas Internacionais da Cozinha.

Vítor Sobral, hoje à frente do grupo Esquina e dividido entre Portugal e o Brasil, faz parte de uma geração de cozinheiros que, como bem evidencia Calvão, «sabendo comunicar, a sua influência espalhou-se através dos media, indo muito além dos restaurantes onde estavam [e estão]». Para Paulina, Sobral é sobretudo incontornável «quando se fala na evolução e modernização da cozinha portuguesa», cabendo-lhe uma parte de leão entre os que se batem entre nós «pelo desenvolvimento de uma cozinha de autor com base nos nossos produtos e património culinário».

Com uma presença cada vez mais consolidada em Lisboa, onde conta com inúmeros restaurantes, Miguel Castro e Silva não fez ainda esquecer a sua matriz — «Foi o primeiro grande destaque a norte», aponta Amado. Paulina ajuda-nos a perceber melhor porquê: «Penso que o facto de, em 2007, ter sido convidado a publicar três das suas receitas no Larousse Gastronomique foi um sinal do reconhecimento do seu trabalho na renovação da cozinha portuguesa.» E vai mais longe ao considerá-lo um pioneiro na abertura de restaurantes próprios, bem como a estabelecer uma relação mais estreita entre a cozinha e os vinhos.

Segue-se Luís Baena, um dos poucos em Portugal que trabalhou com o mestre francês Paul Bocuse e que atualmente atua como consultor gastronómico (embora seja certo que procura um espaço para abrir novo restaurante). Amado resume-o numa palavra: «Inventivo-mor.» Paulina traz-nos à lembrança a sua passagem por Catralvos, em Azeitão, no início do novo milénio, onde «a sua cozinha, muito pouco formal, provocava e divertia, ao mesmo tempo que dava conforto, pois nela também se reconheciam os nossos sabores e aromas».

Por último, Joaquim Figueiredo, porventura o nome deste grupo que menos dirá ao grande público por se encontrar desde 2004 radicado em França, onde dirige, juntamente com a mulher, o Hôtel de France, em Maubourges. Em Portugal passou pelo Ritz Lisboa, pelo Consenso, pelo Café da Lapa, e não foi esquecido: «Lembro-me de que o primeiro contacto com a sua cozinha me marcou profundamente, me fez perceber que havia um mundo para além daquilo que conhecia», recorda Paulina, que enfatiza ainda o facto de «ter sido um dos primeiros chefes a associar o seu nome a um produto porque acreditava nele». Refere-se à hoje difundida flor de sal.

 

A geração Aimé Barroyer

Até esta altura do texto, o nome deste cozinheiro francês, radicado há muito em Portugal, foi omitido intencionalmente porque, como bem começa por dizer Calvão, ele «foi o mestre de uma geração de cozinheiros». Fortunato da Câmara, autor de vários livros e crítico gastronómico, é taxativo: «A grande viragem deu-se com o Aimé.» Sem tirar o mérito a nomes como Sobral ou Figueiredo, «que na altura trabalhavam com patrões e equipas curtas, por isso só podiam fazer um ou outro prato verdadeiramente seus», Câmara frisa que Barroyer «foi o primeiro cozinheiro entre nós, quando praticamente todos os outros estavam a fazer risotos, a colocar os caracóis ou o coelho na ementa de um hotel de cinco estrelas» – o restaurante Valle Flor no Pestana Palace, em Lisboa. «Ele vinha da escola francesa que valoriza o que está ao redor, por isso começou por perguntar aos seus cozinheiros, “O que é que as vossas avós faziam?”. E foi assim que pegou nos produtos, nas receitas e deu-lhes técnica.»

Aimé Barroyer na varanda do então estrela Michelin Tavares, que chefiou entre 2011 e 2012.

O facto de ter formado muitos cozinheiros que agora estão na linha da frente não foi nem deverá ser esquecido — por mais que Barroyer esteja «apagado» desde o encerramento do seu restaurante Rambóia na Costa da Caparica.

Amado não esquece o contributo de outros chefs estrangeiros radicados entre nós — como os austríacos Helmut Ziebell e Dieter Koschina ou o alemão Joachim Koerper —, mas não hesita em enumerar uma lista de chefs portugueses da nova geração que saíram da «escola» Barroyer: João Paulo Vieira, de Leiria para o mundo; David Jesus, sócio de José Avillez e número dois no Belcanto; Henrique Mouro, com um restaurante no Chiado dedicado ao arroz; Martinho Moniz, dos últimos sous-chefs de Aimé no Palace e atualmente em Macau. Câmara junta ao «dream team» os nomes de Pedro Lemos, à frente de um restaurante com estrela Michelin no Porto, ou até mesmo de José Avillez, eleito recentemente pela Academia Internacional da Gastronomia como o melhor chefe do ano.

Opinião mais do que partilhada por Paulina, para quem «o seu papel na formação de um grande número de chefs que têm funções relevantes na atual cozinha portuguesa é indiscutível», sem esquecer ou diminuir «o seu papel na valorização dos nossos produtos». «Apesar de ser francês, reinterpretou a nossa cozinha e defendeu os nossos produtos de forma decisiva, dando-lhes estatuto e direito a surgirem nas cartas de restaurantes de fine dining que não tinham antes.» Uma vez mais, Câmara não tem dúvidas: «Ele fez uma rutura completa. Não se servia aquilo em mais lado nenhum. Estava ali o retrato do país».

 

Sangue novo

«Mais recentemente, José Avillez, Henrique Sá Pessoa ou João Rodrigues incluíram nos seus restaurantes marcas da “nova cozinha portuguesa”», defende Nogueiro Gomes. «É inquestionável o trabalho e evidência da evolução culinária, e que criaram um novo conceito de cozinha portuguesa sem atraiçoar os valores tradicionais associados aos produtos da terra, das confeções tradicionais e do sentimento reconhecido no trabalho final», continua, rotulando-os mesmo de «heróis responsáveis pela mudança de atitude perante a cozinha portuguesa que continuou autêntica, mas modernizada». Para Câmara, «Avillez tem sido, nos últimos anos, o grande estandarte da nova cozinha portuguesa», considerando-o, mais do que só um cozinheiro, «um empresário muito competente».

Conheça a nova Cantina Zé Avillez, que acaba de abrir em Lisboa

 

Amado sintetiza em poucas palavras Rodrigues, Avillez e Sá Pessoa: «O primeiro é um grande cozinheiro com caminho próprio versus herança de um Portugal maior. O seu conceito de menu Origens, Raízes, e agora Matéria, são casos de estudo; o segundo deu ares novos nos conceitos, põe sucesso em tudo, é bom líder e tem uma excelente equipa; o terceiro é o mais mais mediatizado dos chefs transformados em empresários.»

O João Rodrigues é o chefe do restaurante Feitoria no Altis Belém

E encerra deixando uma observação que fazemos também nossa: «É importante salientar que não foram os chefs sozinhos que fizeram a evolução da cozinha nos últimos anos.» Nossa, porque na memória, sempre que se falar de nova cozinha portuguesa, não nos vamos esquecer da importância de nomes como Maria de Lourdes Modesto, Chefe Silva, fundamentais não só pela compilação de receitas mas por as tornarem mais acessíveis, através da televisão, a todo o país, ou Bento dos Santos, que, como bem ressalva Calvão, «foi essencial, fazendo que vários chefs portugueses ficassem a conhecer o que de melhor se fazia então na Europa».

 

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