Morreu Evaristo Cardoso, o homem que levou a “alta cozinha de Monção” para Lisboa

Evaristo Cardoso, cofundador do restaurante Solar dos Presuntos. (Fotografia de Gustavo Bom/Global Imagens)
Aproximamo-nos da porta do Solar dos Presuntos, no Largo da Anunciada, em Lisboa, e tudo parece estar na mesma, a menos da expectativa e do sentimento de festa que ainda há pouco nos crescia no peito e de repente se foi. Deixou-nos o Evaristo e com ele os olhos brilhantes que a criança que tinha na alma perscrutava em nós, com o sorriso sereno e confiante que era tão seu.

Nunca estamos devidamente preparados para o desaparecimento súbito dos que amamos. O caso de Evaristo Cardoso (1942-2022) não é o primeiro da gloriosa fileira restaurativa que se entrincheirou com bravura nas artérias principais de Lisboa e fixou nelas a sua bandeira. Antecederam-no os que ousaram trazer das mais recônditas e distantes origens as especialidades da sua terra para a selva urbana da capital; assim como os que de certa forma recriando pela saudade os saberes e sabores das suas origens quiseram fazer deles marca indelével do pedaço que organicamente lhes pertencia; sem esquecer os ancestrais e notáveis galegos que matizaram de tonalidades marítimas e sápidas o exercício da tasca ou taberna que insistiram em impor na baixa lisboeta. Evaristo Cardoso era bem e bom português.

Alta cozinha de Monção, lemos na entrada em tom de provocação. O inefável cabrito assado sempre disponível no cardápio do Solar dos Presuntos, declina-se como “foda de Monção” aqui e lá, donde provém e assume-se como a coroa de glória dos cabritinhos mais felizes. Evoco aqui a descrição do grande e de boa saúde Júlio, de Gouveia, que jura a pés juntos que o cabrito só é feliz se saltarilhar nas pedras graníticas e frias lá dos altos mais altos. Há sempre cabrito assado no Solar e o produto é tudo.

O bacalhau frito à moda de Braga recebe processamento especial, rodelas grandes e bem fritas de batata, posta demolhada e coesa, copiosamente coberta pela competente cebola frita, e faz parte do património ancestral da casa. A lampreia do rio Minho, logo que atinge o tamanho capaz, serve-se com garbo e acrescento no Solar dos Presuntos, pode haver igual, mas melhor não há – memória de ainda há bem pouco tempo – o festival lampreia será sempre evocativo do gosto do grande Evaristo em partilhar com os melhores o melhor da sua terra.

O polvo à galega corre com fluidez pelas mesas fora do primeiro ao último minuto de atividade da casa, Pedro Cardoso aumentou em muito o peso específico de tudo o que serve e soube trazer para a liça a filha Carolina. Está como peixe na água a lidar com as hordas de portugueses e estrangeiros que vêm na expectativa de se sentar à mesa “do melhor restaurante do país”. Afirmação complexa e atrevida, a um tempo impossível e desaconselhável a a jornalista que se preze. No canto junto à cozinha, no piso térreo, não teremos mais o alívio confiante do sorriso de Evaristo Cardoso, mas sabemos que ele estará sempre ali. À família, em particular a Graça Cardoso, apresentamos as mais sentidas condolências.




Outros Artigos





Outros Conteúdos GMG





Send this to friend