Entrevista: O chef português de Osaka que vem cozinhar a Lisboa

José de Sousa Botelho é de Lisboa, e cresceu entre a capital e a praia da Areia Branca, no Oeste. A cozinha sempre foi uma parte importante da sua vivência familiar, mas foi no Japão que se tornou cozinheiro profissional. Agora, o chef e proprietário do restaurante Lisboa, em Osaka, regressa temporariamente a casa, para um jantar de edição limitada em parceria com Artur Gomes, no Erva.

Como foi parar ao Japão?
Estava a estudar arquitetura e andava descontente, pensava em mudar de universidade ou de curso. Nessa altura, fui ao Japão como líder de um campo de crianças do CISV. Durou um mês, e nesse período eu e uma japonesa do staff engraçámos um com o outro. Regressei a Portugal, mas mantivemos contacto quase diário. Oito meses depois, estava de volta ao Japão. Por uma série de acasos, conheci um senhor que tinha um restaurante na zona nobre de Osaka. Ele tinha estado nos Estados Unidos, dominava o inglês numa altura em que eu não dominava o japonês, e isso facilitou em muito: uma colocação profissional e o culminar de uma viagem que me ia levar à cozinha.

Foi há quanto tempo?
Fez, em março, 11 anos. Era um espaço pequeno, tínhamos de passar por todas as estações. Como não tinha qualificações técnicas ou de construção de sabores, tive de ir subindo a pulso. Nem cortar cebolas sabia. Ou melhor: sabia àquele ritmo de quem as corta em casa, mas ao nível profissional, com velocidade e um certo standard de corte, isso teve de ser tudo aprendido.

Quando abriu o restaurante Lisboa?
Em novembro faz nove anos. Na altura era como uma plataforma para treino. Mesmo depois de dois anos a trabalhar sob a alçada de um chef japonês, não tinha nível técnico suficiente. A culinária é um trabalho em constância, é preciso ultrapassar hoje os níveis técnicos que tínhamos ontem, evoluir. Inicialmente, o conceito era diferente. Chamava-se Lisboa Tasca Portuguesa. À medida que fui evoluindo tecnicamente e na construção de sabores, consegui ir arriscando mais, tentando coisas novas, errando muito. Em 2013 candidatei-me a um estágio no Tribute to Cláudia, o festival gourmet do Vila Joya [no Algarve]. Na altura muitos chefs conhecidos globalmente participaram, foi importante a presença dentro desse espaço, ver como eles trabalhavam. Ver como era a alta cozinha, e se era mesmo isso que eu queria fazer – decidi que não era. Queria algo mais casual, mas em que o cuidado com o sabor e com a apresentação, o rigor, estivessem presentes. Em 2013, voltando ao Japão, fizemos uma renovação da carta, tirámos a «Tasca Portuguesa» do nome, e a partir daí funcionámos essencialmente com menu de degustação, com possibilidade de escolha à la carte.

Portanto, começou com petiscos e comidas mais tradicionais e evoluiu para uma abordagem de autor à cozinha portuguesa.
Sim, mais ou menos. Mesmo na cozinha mais tradicional, o que eu estava a fazer era o que não se encontraria noutros espaços de cozinha portuguesa no Japão. Tive de arranjar o meu nicho, um espaço em que não andasse a batalhar contra os outros restaurantes portugueses. O que eles não serviam iria eu servir. Numa base de petisco, porções mais pequenas, mas pratos que não fossem tão conhecidos, mesmo dentro do receituário português.

«Outros restaurantes portugueses»? Há mais em Osaka?
Havia um com chef português, que entretanto foi vendido e veio a falir. Depois fomos o único durante uma série de anos. Neste momento há outro que é gerido por um japonês e existe um bar de vinhos e tapas em Nagasaki, abertura recente, mas, português com restaurante por conta própria, penso que neste momento sou o único em todo o Japão.

Que tipo de cozinha faz agora no Lisboa?
Uma cozinha com raízes portuguesas. O que quero mesmo é dar a conhecer uma base de sabores, sem estar agarrado a cânones que não me permitam usar ingredientes japoneses, ou de época. Com uma base técnica e de sabor portuguesa, mas com uma apresentação diferente, mais cuidada, sabores mais limpos, utilização reduzida de gorduras.

Como é fazer cozinha portuguesa para japoneses? Teve de fazer muitas adaptações?
Não sinto necessidade. Quero que os sabores sejam o mais originais possível. Quero transmitir as memórias que fui adquirindo ao longo da minha vida em Portugal. Em termos técnicos, se faço uma caldeirada, poder-se-á olhar e perguntar logo, «Então mas onde estão as batatas? E o pimento?». Mas a verdade é que, se se provar, a base está lá.

Um português não estranharia?
Não. É aquela coisa de «Não conheço, mas afinal conheço». A partir da primeira garfada há um reconhecimento. Tento jogar com isso. Não quero mudar a base, não quero adaptar ao palato japonês só porque sim.

Que parte dessa cozinha de raízes portuguesas tem mais adesão?
A simplicidade, a não sobreposição de sabores que se abafem uns aos outros. O tomate saber a tomate, um caldo de peixe a saber a caldo de peixe. Essa «limpeza», essa base muito sóbria, sem grandes confusões, é algo de que os japoneses gostam, pela minha experiência. Quando provam, muitos deles ficam fãs.

Que dificuldades encontra em fazer cozinha de base portuguesa no Japão?
Produto. Muitos produtos não são fáceis de encontrar, não há importadores. Fumeiro, por exemplo: para nós é dado adquirido, vai-se a qualquer lado e está disponível. Lá, não. Mesmo existindo um produto que possa substituir, acaba sempre por ser diferente. Fazer pratos tradicionais portugueses, em que será necessária uma longa cocção dos ingredientes para haver fusão de sabores – sejam feijoadas, ranchos à transmontana, sopas da pedra, mesmo a comida do Alentejo –, tudo isso tem uma base intrínseca de fumeiro. Não havendo, tive de ser eu a fazer fumeiro para usar como base.

Faz o seu próprio fumeiro em Osaka?
Sim, dependendo das épocas do ano, tenho de ter cuidado com as temperaturas, as humidades durante o verão, tenho de me reger com as caraterísticas climatéricas ao longo do ano. Mas sim, cada vez mais tenho interesse em reproduzir fumeiro no Japão.

Portanto, não tem de ir daqui com uma uma mala cheia de chouriços…
Infelizmente, nem posso. Já me apanharam esses produtos no aeroporto à chegada ao Japão. No ano em que estive no Vila Joya, voltei de Portugal com dois quilos de presunto Pata Negra de Barrancos e ficou no aeroporto de Osaka. Deve ter sido um festim…

JANTAR NO LISBOA DE OSAKA, SEM SAIR DE LISBOA
A estreia de José Sousa Botelho a cozinhar em Portugal dá-se a 14 de junho, num jantar a quatro mãos com Artur Gomes, no restaurante Erva. O peixe e o marisco serão as estrelas da carta, um desfile de oito momentos, cortejado por vinhos menos comuns da Herdade do Esporão.

Encontro de chefs Lisboa-Osaka
14 de junho, 20h30, Restaurante Erva
Hotel Corinthia, Av. Columbano Bordalo Pinheiro, 105 (Sete Rios), Lisboa
Tel.: 217236313. Web: erva-restaurante.pt.
Preço jantar: 85 euros (inclui bebidas e café)

 

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