Crítica de restaurante por Fernando Melo: Alma, Lisboa

Ganha nova configuração e lugar o restaurante de proa de Henrique Sá Pessoa, na Baixa lisboeta. Complexidade na forma simples, imperativo de carreira que chega normalmente mais tarde e que aqui se percebe estar há muito tempo instalado.

Quanto mais avança e se desenrola a onda de afirmação internacional dos nossos cozinheiros, mais sossegado fico. Temos um grupo sénior ainda jovem – aparente paradoxo – que, além de ter já formado a próxima linha de cozinheiros, conseguiu criar um código acessível a todos os que se aproximam das boas mesas do nosso país. Sem renúncia ao passado, antes abraçando-o e dando-lhe configuração vanguardista, abordando com total segurança o receituário e os produtos de sempre. Henrique Sá Pessoa exprime bem esse fenómeno, acrescentando-lhe dois aspetos que o singularizam em absoluto: fusão com sabores e técnicas de outras cozinhas e o prazer em dar prazer às pessoas que serve.

As coisas práticas e rotineiras – hambúrgueres, batatas fritas, pizas, bifes – interessam-lhe tanto como a extração da essência de uma erva, e isso nota-se muito na forma como cozinha. O Alma representa justamente a coexistência desses dois mundos na figura única de Henrique. Sala descontraída, cardápio de fácil entendimento, especialmente quando se conhece o lado erudito do cozinheiro, serviço impecável e bem-disposto, e em cada refeição uma experiência integral, de grande intensidade e emoção. De vez em quando, apercebemo-nos da profundidade e da seriedade do trabalho que acontece naquela cozinha, onde com Sá Pessoa oficia Daniel Costa e uma brigada francamente jovem. Pratos de muitos passos, afinação ao rubro e sobretudo os tempos de execução, tudo coerente, dá prazer. Uma das mesas permite estar quase dentro da cozinha, bate todas as experiências televisivas, além de que ali está mesmo a acontecer a vida real, sem disfarces; estão a tratar de nós.

Entradas, pratos principais e sobremesas é a estrutura da carta do restaurante, com cinco propostas no primeiro capítulo, outras cinco no segundo e finalmente quatro sobremesas. Tremi sem razão e deixei-me vencer pelas cenouras assadas, queijo de cabra, bulghur de frutos secos e azeite de cominhos (18 euros), trabalho bom de contenção dos açúcares libertados pela cenoura na cozedura, além de um mix de texturas em formato delícia. Incrível o choco laminado, puré de ervilhas, caldo de galinha asiático (18 euros), execução transcendental. Esplêndidas as vieiras com molho romesco, batatinha fumada, vinagrete de tinta de choco, crumble de pão seco e pata negra (19 euros), a não perder.

Nos principais, há um salmonete, caldo de caldeirada, escama frita (29 euros) que exprime a força e a validade da abordagem Sá Pessoa ao peixe fresco, produto inteiro e cozeduras alternativas. O leitão confitado, puré de batata-doce, pak choi, jus de laranja (27 euros) faz o mesmo exercício na secção carnívora, verdadeiro tratado. Senti vitória semelhante na laranja e amêndoa, gelado, biscoito, curd e emulsão de amêndoa amarga (10 euros), brilhante e inédita. Rodolfo Tristão, sommelier de truz, igual a ele próprio, conhecedor profundo e mestre no aconselhamento e nas harmonizações vinho-comida. Da casa fica a sensação de que a estrela virá um dia. Parabéns.

Texto escrito originalmente na Evasões 41, de 8 de janeiro de 2016

Classificação
O espaço: 4,5
O serviço: 4,5
A comida: 5

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