Chef João Oliveira: «Comecei a cozinhar para ajudar a minha mãe»

Chef João Oliveira: «Comecei a cozinhar para ajudar a minha mãe»
Entrevista ao chef João Oliveira, que conquistou para o restaurante algarvio Vista uma estrela Michelin, e que acaba de ser distinguido com um prémio da Academia Internacional de Gastronomia.

A uma semana de fazer 30 anos, João Oliveira soube que conquistara uma estrela Michelin para o restaurante Vista (Portimão). Há dois meses, com 32 anos, foi distinguido com o prémio «Chef de L´Avenir» (Chef do Futuro), atribuído aos jovens chefs considerados talentosos pela Academia Internacional de Gastronomia, representada em Portugal pela Academia Portuguesa de Gastronomia. João Oliveira começou a sua carreira do Largo do Paço, passou pelo The Yeatman e pelo Villa Joya (todos eles restaurantes «estrelados») até abraçar este projeto do Vista, em 2015, restaurante instalado no hotel de luxo Bela Vista Hotel & Spa, um palacete junto ao mar, na praia da Rocha. Fomos saber, contudo, de onde veio este que é considerado um dos mais promissores chefs portugueses da sua geração. Veio de uma zona rural e mineira de Valongo, onde cresceu entre o campo e as idas à pesca com o pai e aprendeu a cozinhar para ajudar a mãe a cuidar dos avós. Jogou futebol no Sporting Clube de Campo até uma lesão o levar a tornar-se árbitro, função que exerceu até aos 18 anos. Fizemos esta entrevista junto ao rio Ferreira e à ponte de Luriz, onde pescava em criança, à vista da casa dos pais e da estufa onde a mãe, que perdeu cedo, tinha mais de 800 vasos de orquídias.

Com era a sua vida, aqui em Campo?
Nasci e fui criado aqui em campo, em Luriz, e os meus avós viviam no Outeiro, outra zona. Eu e os meus irmãos [um irmão gémeo, que é electricista, e uma irmã mais velha, que é investigadora de ciências sociais] fomos criados com os meus avós. O meu avô criava animais e tínhamos de tudo, batatas, cebolas, couves. Na casa dos meus pais, era igual. Fui criado no meio do campo, era uma vida completamente rural.

E quando é que começou a cozinhar?
A minha avó era diabética e quando fiz 12 anos aprendi a dar-lhe a insulina para ajudar a minha mãe, que era dona de casa e tinha dois cuidados, entre nós e os meus avós, andava entre as duas casas várias vezes por dia. Comecei também a preparar-lhe comida. Aos 13 ou 14 anos, diziam-me «tira aquele pedaço de carne de vaca ou de frango que estava no frigorífico, meter numa panela com água, põe uma mão cheia de arroz, corta uma cebola…» Começou assim o gosto, mas foi por ajudar a minha mãe. Depois os meus avós ficaram mais dependentes, tornou-se uma ajuda e uma necessidade.

(Fotografia: Pedro Correia/GI)

Foi nessa idade que decidiu estudar cozinha?
Ainda andei um bocado indeciso na escola secundária, cheguei a faltar às aulas, mas quando fui para o 11º ano, voltei para o curso de cozinha e na cozinha fiquei até hoje. Estudei na Escola Infante D. Henrique, nem sabia que havia a Escola de Hotelaria do Porto. Com 15 anos, ia para o Porto de comboio, saía daqui e ia para o apeadeiro de Campo, para sair em São Bento e ir para Cedofeita a pé. Na altura a minha família não aceitou a minha decisão. Os meus irmãos iam para a universidade e eu ia para um curso profissional, ia para cozinha e os cozinheiros eram mal vistos.

O que é que os seus pais esperavam que fosse?

Era a universidade… O meu pai tinha uma empresa de electricistas e o meu irmão tirou o curso, fez formações e ficou com ela. A minha irmã fez mestrado, doutoramento e mais coisas. Mas eu deixei-me estar. Acabei o curso e fui trabalhar na Casa da Calçada, em Amarante, fiquei lá quase cinco anos. Comecei a estagiar com o chef José Cordeiro e depois trabalhei com o chef Ricardo Costa. Mas no meio disso, fui trabalhar para um restaurante na Régua. Temos esses dois caminhos, ou ser logo chef ou começar mesmo por baixo. Estive lá dois meses, ganhava bem, tinha tudo, geria o restaurante, mas não era o que queria. E eu decidi começar por baixo e pensei que me ia sacrificar durante meia dúzia de anos até atingir o meu objetivo. Já tinha sido chef durante dois meses e percebi que não era aquilo que eu queria.

Conseguiu a experiência que desejava?
De 1600 euros, passei a ganhar 400 euros e a pagar 300 euros de renda, os meus pais nem adivinhavam. Ninguém sabia que eu nem dinheiro para vir a casa tinha. Foi uma colega minha que me ajudou muitas vezes. Nunca me arrependi disso, estive assim dois anos e meio da minha vida, a vir a casa uma vez por mês. Depois, consegui condições melhores e fiquei lá 5 anos e 10 meses. Depois, a minha mãe faleceu e a minha vida mudou toda. Quis ficar mais perto do meu pai e aceitei o desafio do chef Ricardo Costa para ir trabalhar com ele no The Yeatman. Fiquei lá 4 anos e 9 meses.

Qual foi o desafio, dessa vez?
Estava há muito tempo a trabalhar com o mesmo chef, era efetivo, tinha casado, tinha casa… tinha um gato! Todas aquelas coisas que se quer na vida. Mas queria ver mais, queria aprender mais. Fui para o Villa Joya [Albufeira], estive lá sete meses, queria mesmo aprender, sentia falta. Voltei a ver a minha família uma ou duas vezes por mês. Surgiu a oportunidade de ir para o Vista [no Bela Vista Hotel & Spa, Portimão] e fui. E mudei a vida toda para o Algarve. Dois meses depois, a minha mulher, que é enfermeira, foi ter comigo.

(Fotografia: DR)

Qual é a sua assinatura na cozinha, enquanto chef?

Adoro trabalhar com peixe, marisco, bivalves, quase tudo o que vem do mar. Eu e o meu pai adorávamos pescar e íamos muitas vezes para Aveiro, Mogadouro, Bemposta… Tornou-se quase um hábito cozinhar mais peixe do que carne, gosto muito da pesca e transmito isso na cozinha. No hotel onde estou, por cima de uma falésia, virado para o mar, faz sentido trabalhar sobretudo com peixe e marisco. Temos a lota em Portimão, temos tudo ali à mão, conseguimos fazer uma versão muito peculiar do produto.

Quando foi para o Vista, foi com a ideia de trabalhar para a estrela Michelin?
A ideia era sempre dar o melhor, sou uma pessoa muito obcecada com o trabalho, vivo o trabalho de forma muito intensa, estou lá de manhã à noite. Não gosto de parar ou de fazer sempre o mesmo, tudo o que for rotina cansa-me. As condições que pus no Bela Vista era ter um bocadinho carta branca no conceito, na ideologia, haver um investimento. Fiz isso no restaurante, formei uma equipa nova e também nova na sala. Fizemos uma cozinha nova, com uma Mesa do Chef, investimos muito na garrafeira, temos quase 900 referências. Além disso, há a parte criativa para o cliente. Cada vez inserimos mais pormenores para tornar a experiência diferente.

O restaurante tem a sua assinatura por todo o lado, não apenas na cozinha, é isso?
Nós somos um Relais & Chateaux, que é uma cadeia de hotéis clássicos, antigos, com história. O Bela Vista foi o primeiro hotel do Algarve, é um palacete com 104 anos, com onze quartos, todos completamente diferentes, ainda com muitas peças originais. Mas nem a localização nem o hotel me limita a fazer só clássico.

Como é o público do Vista?
O restaurante e o hotel são completamente diferentes. No restaurante, temos 60 a 70 por cento de clientes externos, embora nos últimos dois anos já tenhamos tido alguns portugueses. Mas é um público sobretudo americano, canadiano, francês, alemão, belga. Inglês muito pouco, trabalhamos com um mercado um bocado diferente do Algarve.

Como descreve a experiência de um dos seus menus de degustação?
Aquilo que me preocupa mais é a qualidade do produto e tratá-lo bem, com respeito. Com amor e atenção. Cada coisa que esteja no prato tem que ter o sabor daquilo que é, que não esteja camuflado o que é. Cada ingrediente tem que ter o seu sabor bem trabalhado. Depois procuramos trabalhar com os melhores peixes, mariscos, carnes, tudo fresco todos os dias.

(Fotografia: Pedro Correia/GI)

Tem um peixe preferido?
Sim, vários. E até há dois meses, eu tinha um menu chamado Mar e sustentabilidade. Fazia um trabalho em conjunto com barcos de pesca, com arrastões e trazia espécies que não entram em lota, fazia testes e algumas delas entraram em circuito comercial, como o taralhão, o pé de burro [moluscos], a azevia [peixe]. Mas tive que acabar com ele porque tenho uma Mesa do Chef com clientes a jantar todos os dias dentro da cozinha, tenho uma garrafeira e para ter esse serviço, tive que abdicar de outros. Deixei de ter tempo de procura e de pesquisa, deixei de ir aos barcos. Agora, trabalhamos com dois menus de degustação, um é vegan/vegetariano, o outro é tudo o que se encontrar de melhor no mercado, seja o wagyu [novilho japonês], que é estrangeiro, seja o carabineiro azul.

Onde vai buscar as hortícolas?
Trabalhamos diretamente com uma quinta de biológicos, que fica em Sargaçal, Lagos. Todas as semanas, mandam um cesto surpresa e cozinhamos com o que houver e for melhor para encaixar no prato.

Criou uma sobremesa de sopa seca, um doce tradicional de Valongo feito com sobras de pão. Continua a fazê-la?
Quando faço, é no Natal ou na passagem de ano. É uma sopa seca, feita de maneira diferente, com um gelado e texturas diferentes. Uso pão do dia, não uso pão recesso. Mas uma coisa é fazermos isso aqui na nossa zona, onde as pessoas percebem e tem lógica, é um clássico. Outra é estarmos num restaurante e termos que nos preocupar com o cliente. Faço a regueifa às vezes, mas outra coisa é levar uma sobremesa que basicamente é pão embebido em leite, açúcar e canela que vai ao forno. Dar isso a um público que só tem 15% de portugueses não ia criar a mesma aceitação. Nem é o ser difícil aceitar a sobremesa, é explicar o que é – um pão que sobrava de cinco dias e do qual se fazia este aproveitamente. É preciso explicar isso. Já no Natal e épocas festivas se pode explicar que é um doce tradicional da terra do chef, que se fazia porque naquela altura sobrava pão, é diferente.

Quando vem a casa, a sua família pede-lhe para cozinhar?
Sim.

E o que cozinha para eles?
Gosto de coisas simples, se disser ao meu pai que venho a casa, ele faz arroz de cabidela, que é o prato que mais adoro. De resto, gosto de comida normal, como arroz de frango. Para as pessoas que não estão habituadas a cozinhar ou os pais cozinham para elas, torna-se cansativo esse tipo de comida. Para quem trabalha na restauração e come coisas completamente diferentes ou nem tempo para comer, como me acontece muitas vezes, o que nos apetece quando saímos do trabalho é voltar à normalidade. Quando a minha mãe era viva, fazia muitas comidas que me apetecem agora. Gosto de voltar a esse conforto que me traz memórias.

As suas memórias influenciam a sua cozinha?
Não, porque são coisas completamente diferentes. Uma coisa é o dia a dia, o que se come regularmente, outra é o que posso pôr dentro da carta. Não vou dizer que levo memórias, se tenho memórias de comida de conforto, de casa, comida de tacho e agora faço uma cozinha diferente. A minha avó fazia uma sopa de feijão frade incrível, fazia comida daquela que eu vinha a 200 metros e já sabia o que era porque ela cozinhava no fogão a lenha e acendia-o às cinco da manhã. O meu avô fazia uma coisa a que chamavam "sapatilhas", que eram as barbatanas do bacalhau passadas por uma espécie de polme e fritas e depois passadas por massa de pataniscas para fritar outra vez. Também faziam isso na tasca do Sevilha [uma taberna antiga de Campo, já encerrada], o meu avô foi das primeiras pessoas a fazer aqui.

O seu avô também cozinhava?
O meu avô vendia fruta, tinha um café que também era tasca, mercearia, vendia gás e tudo isso. Era na zona onde as mulheres faziam as penas [de lousa] e se fazia a extração da ardósia. Toda a gente ia lá beber a "receita", comer as pataniscas e o presunto. Isso não dá para passar para a minha carta. Quando saio da cozinha, quero comer coisas assim, o que a minha mãe fazia, o que as famílias comem. Vou a muitos restaurantes, em termos de trabalho ajuda a compreender certas coisas, vou muitas vezes a Espanha e a França, para perceber como eles trabalham, como são as técnicas. Isso permite experimentar junções de sabor ou ver técnicas de cozedura que nos podem ajudar a melhorar o nosso prato ou ver um ingrediente que se calhar não estavamos a tratar tão
bem como devíamos. Ninguém sabe tudo e faz parte ir a esses sítios, como faz parte ir ao tradicional.

Tem 32 anos, este ano recebeu o prémio «Chef de l´Avenir». Ainda não tinha feito 30 quando ganhou a estrela Michelin. Como tem sido receber estas distinções?
Tem sido trabalho, trabalho, trabalho. Estou sempre à procura de crescer, dar o meu melhor, ter a consciência tranquila. Durante aquele tempo todo [desde que foi para o Vista] não se falava da estrela Michelin, mas de ser o melhor que conseguíssemos, diferentes dos outros.

O seu pai ja deu o braço a torcer no que diz respeito a ter ido estudar cozinha?
Não sei, acho que não! [risos]

 

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