Há mais de 20 anos que não se comia esta bolacha

Desde o início de novembro que na Baixa de Setúbal se sente um perfume a canela. É um dos ingredientes das bolachas «barquilho», produzidas pela Bolacha Portugueza, que ao fim de décadas recuperou uma receita secular e agora volta a unir gerações.

Esta loja encerrou permanentemente.

Os setubalenses na faixa dos 50 anos reconhecem-nas como «barquilhos» e ainda guardam na memória os tempos em que os homens que as vendiam carregavam uma lata cilíndrica às costas, com uma roleta prometedora de um jogo de sorte ou azar, mas sempre doce. «Sai sempre!», pregavam os dois ou três barquilheiros que percorriam as ruas de Setúbal. «Isto era altamente viciante porque criava expectativa», começa por contar à Evasões a autora deste novo capítulo da história dos barquilhos setubalenses.

Alguns barquilheiros tinham roletas com um número mínimo e máximo; outros com casas de azar ou que limitavam o sorteio a bolachas pequenas e grandes. As crianças, ávidas de um doce, pouco se preocupavam com isso: davam-lhes moedas, eles giravam a roleta e o algarismo apontado correspondia ao número de barquilhos que levavam para casa. «Toda a gente adorava a bolacha», recorda Filomena Vargas, de 54 anos. «Lembro-me que existia o Coma com Pão, os chocolates da Regina, os pirulitos, os gelados da Olá, castanhas assadas e farinha torrada. O que fazia a minha perdição era o barquilho».

«Trouxemos para o mercado um produto que só as pessoas com pelo menos 50 anos é que conhecem, em Setúbal».

Como ela, toda uma geração deixou crescer água na boca por aquelas bolachas até ao final dos anos 1970. Algumas, por certo, podiam já nem se lembrar da sua existência. Até à abertura da loja da Bolacha Portugueza, na Rua Paula Borba, dia 4 de novembro. «Trouxemos para o mercado um produto que só as pessoas com pelo menos 50 anos é que conhecem, em Setúbal. As pessoas passam na rua, olham para a roleta e a reacção é espetacular», relata a empresária, enquanto aponta para a réplica que mandou fazer em azul e branco. Uma das originais, diz, pertence ao museu do antigo orfanato de Setúbal.


A origem da receita

A roleta na montra atrai o olhar, mas é o perfume intenso a canela que impele os clientes a caminhar, com curiosidade, até ao balcão de madeira onde se perfilam cinco sabores de barquilhos. Laranja, limão, moscatel e especiarias, este último pensado para as vendas de Natal. A receita do barquilho de sabor «original», essa, é outra longa história que Filomena Vargas tenta resumir, confiante na veracidade dos registos e documentos que encontrou sobre a origem desta bolacha.

Tudo aponta para que tenha surgido no início do cristianismo como uma derivação do pão divino (pão de anjo) que era distribuído aos fiéis nas igrejas. Já no século XV, terá havido utensílios de confeção marcados com brasões reais, prova de como a bolacha era muito apreciada pelos reis, senhores e burgueses, que a comiam como sobremesa e acompanhada de vinho. Até que as religiosas copiaram e modificaram as receitas, para as bolachas serem provadas em confederações e posteriormente vendidas ao público.

Cada região da Europa tomou-as como suas, acrescentando-lhes ingredientes, alterando formatos e designações.

Foi assim que, tal como grande parte da doçaria conventual portuguesa, a receita dos chamados barquilhos chegou à atualidade. Em Setúbal, existiram duas ou três pessoas dedicadas a esta produção, pujante até ao 25 de Abril. «O país foi invadido por chocolates e bebidas de marcas internacionais» e a bolacha perdeu protagonismo até os pregões deixarem de se ouvir.

Da técnica à loja

Filomena Vargas só se apercebeu disso «dez ou onze anos depois», mas jurou que um dia iria aprender a fazê-los. Uma missão quase impossível. Recorreu à memória dos mais velhos, bateu a todas as portas, rumou a Sines com o pai (quando ainda não tinha carta de condução) na esperança de encontrar um velho barquilheiro que fazia as bolachas na praia. O homem tinha morrido e a mulher não se mostrou disponível para falar.

Quando soube que as receitas da bolacha só passavam por herança familiar ou eram vendidas por avultados valores, pelo seu caráter único e sigiloso, Filomena percebeu porque não lhe abriam as portas. Há quinze anos, porém, cruzou-se com um vendedor de castanhas em Setúbal cujo rosto lhe era familiar da venda dos barquilhos. E acertou. Idalécio, o último barquilheiro vivo em Setúbal, acedeu em confiar-lhe a receita, a técnica de confeção e uma das chapas com que fazia as bolachas, ao invés de vender todo o espólio ao Museu do Trabalho Michel Giacometti.

«Eu não sabia quando, nem como, nem aonde, mas prometi-lhe que haveria de fazer barquilhos», diz Filomena.

Passaram quinze anos e em setembro de 2016, quando se afastou do ensino especializado da música, Filomena decidiu cumprir a promessa e aquele que tinha sido o sonho de uma vida: fazer barquilhos e vendê-los ao público. Na copa da loja produzem em média 300 unidades por dia, todas enroladas à mão quando a massa ainda está a arrefecer na chapa. O método é o original. A única diferença é que a massa – feita com leite, farinha, açúcar e restantes ingredientes secretos – é enrolada em forma cilíndrica, e não em cone ou em leque, como antigamente.

No espaço em que tudo é de inspiração portuguesa – do chão em mosaico hidráulico azul e branco, feito à mão por um artesão de Estremoz, ao logótipo, feito pela filha, Constança Vargas, designer gráfica – vão em breve instalar um balcão, para os clientes poderem acompanhar as bolachas com um chocolate quente (italiano) ou café. Entre um cliente e outro que entra, Filomena revela ainda que no verão a proposta para beber vai ser um produto «português, fresquinho, e também do passado». A família, que apoia o projeto incondicionalmente desde o primeiro minuto, está sempre lá, inclusive a filha mais nova, a atender ao balcão. E os setubalenses aprovam. Parece que os barquilhos regressaram de vez.

 

Algo está a fazer com que o sistema não consiga mostrar a ficha ténica desejada. Pedimos desculpa pelo incómodo.

 

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