900 anos de Ponte de Lima: um roteiro pela sua gastronomia

(Fotografia de Igor Martins)
O arroz de sarrabulho à moda de Ponte de Lima é o rei, mas outros pratos nobres com forte raiz rural são senhores no reino da gastronomia, numa vila que em 2025 está a celebrar 900 anos de existência.

É como se fosse possível reunir numa só refeição nos restaurantes do concelho, toda a história do concelho. A começar pelos enchidos e fumados, tão ligados, desde tempos ancestrais, à tradição da matança do porco, acompanhados por broa de milho, que todas as casas coziam em forno de lenha. E continuar escolhendo para o repasto um dos pratos que marcaram gerações de famílias de lavradores e fidalgas, o arroz de sarrabulho, que a partir do século XX passou a reinar nos cardápios de restaurantes, pensões e casas de pasto de Ponte de Lima, por intervenção de Clara Penha, pioneira da restauração contemporânea local, e se tornou prato tradicional nas romarias, festas, casamentos e feiras. Até que em 2024 foi reconhecido como Especialidade Tradicional Garantida pela União Europeia.

Da realeza gastronómica de Ponte de Lima, herdada de receituários familiares, consta também nas ementas o bacalhau de cebolada, um prato impregnado de ruralidade e cujas raízes remontam pelo menos ao século XVI, quando este peixe era comercializado na região seco e salgado. Frito, em pataniscas ou bolinhos de bacalhau, tornou-se presença tradicional nos farnéis das gentes do campo e servido em tabernas, casas de pasto tasquinhas ambulantes.

A carne Minhota, assim designada desde 2002 uma raça bovina autóctone também conhecida por Galega, é outro produto gastronómico que tem posto na hierarquia gastronómica de Ponte de Lima. Conhecida por ser suculenta, tenra e saborosa, é uma carne que possui selo de certificação desde 2013, sendo muito requisitada à mesa, principalmente em forma de naco.

A lampreia é igualmente rainha, neste caso como prato de época. A espécie encontra-se documentada como fazendo parte da “riqueza piscícola” do rio Lima, no alvará de 1568 do cardeal D. Henrique. Desde os primeiros meses do ano até à primavera, ela povoa as ementas como uma iguaria que atrai diversas gerações de apreciadores. O arroz de lampreia e a lampreia à bordalesa são receitas que vingaram no tempo e que têm bastante saída, de preferência harmonizadas com vinho verde da região.

O vinho verde Loureiro ou o Vinhão (na malga), assim como um príncipe das sobremesas, o leite-creme, e a sidra, antigo “vinho de maçã”, símbolo de uma tradição enraizada nas práticas agrícolas locais e bebida típica das Feiras Novas, também têm lugar à mesa. São embaixadores que levam o nome de Ponte de Lima pelo mundo.


Arroz de sarrabulho à moda de Ponte de Lima
A receita atravessa gerações desde o século XIX. Agora com certificação da Europa como especialidade tradicional, conquistou garantia de qualidade e ainda mais notoriedade. Hoje em dia atrai gente de todo o lado para os restaurantes da terra. No Manuel Padeiro, casa com quase 66 anos, a atual proprietária é filha de Esmeralda de Sá Pires, 92 anos, uma das precursoras da iguaria. Manuela Silva, 64 anos, replica o seu saber: coze carnes de porco, galinha e vaca. Usa a calda da cozedura temperada com cravinho em grão e cominhos com para fazer o arroz caldoso, com as carnes desfiadas e sangue de porco. Serve com rojões, batata assada, sarrabulhas (chouriça de cebola e redenho), belouras, sangue cozido, tripa farinheira e miudezas do porco.
Manuel Padeiro. Rua Senhor do Bonfim, 27. Tel.: 258 941 649. Web: facebook.com/RestauranteManuelPadeiro. Das 12h às 15h30 e das 18h às 22h, de terça a domingo. Preço: 29 euros (duas pessoas)

(Fotografia de Pedro Granadeiro)


Bacalhau de cebolada

Deolinda Martins, de 59 anos, cozinheira e proprietária d’O Confrade, garante que, depois do arroz de sarrabulho, é o prato que tem mais saída. Testemunha o seu enraizamento na gastronomia local, recordando a época em que, ainda criança, ajudava a mãe a preparar “as merendas” para levar para o campo na freguesia de Ribeira, no tempo das vindimas e das colheitas da batata e azeitona, em que não faltava o bacalhau de cebolada. Serve-o no seu restaurante, em posta generosa frita em azeite, depois de escaldada em água a ferver e passada em farinha. É guarnecida com molho de cebolada, pimento, louro e salsa, e batata frita às rodelas. N’O Confrade, recomenda-se vinho verde para acompanhar.

O Confrade. Mercado Municipal, Loja 1, Passeio 25 de Abril. Tel.: 258 753 609.Web: facebook.com/OConfrade. Das 12h às 22h, de quinta a terça. Preço: dose 37 euros, meia dose 20 euros.

(Fotografia de Rui Manuel Fonseca)


Carne minhota

O naco é uma das especialidades dos restaurantes locais. A carne desta raça bovina autóctone, conhecida ao longo dos séculos como Galega ou Minhota, é tão saborosa, suculenta e tenra, que apenas necessita de sal para ir ao grelhador. É o que garante Sofia Caldas que, com o irmão Hélder, gere o restaurante que a mãe, Maria da Conceição Fernandes, antiga cozinheira, tornou referência em Ponte de Lima. O naco de carne e a costeleta de vitela da raça Minhota, esta última acompanhada com arroz de feijocas no forno, são especialidades da casa. “É uma carne muito procurada, porque as pessoas sabem que é de qualidade, de animais mantidos no pasto”, nota a filha da matriarca, hoje com 72 anos, que foi a primeira a implementar o prato e já garantiu continuidade, transmitindo o legado aos seus descendentes.

Sabores do Lima. Largo D. António Magalhães, 67/68. Tel.: 258 931 112. Web: facebook.com/restaurantesaboresdolima Das 9h30 às 23h, de terça a sábado; das 9h30 às 18h ao domingo. Preço: dose 39 euros (duas pessoas – naco ou costeleta de vitela com arroz de feijoca)

(Fotografia de Rui Manuel Fonseca)


Lampreia

É um prato de época incontornável na gastronomia tradicional e atrai apreciadores de várias gerações a Ponte de Lima. Miguel Barbosa, de 29 anos, sócio gerente do Restaurante Açude, testemunha que é uma espécie de “arroz de sarrabulho de lampreia”, que tem sempre clientes, independentemente do preço, que tem oscilado e chega a atingir valores “muitos elevados”. E que na sua temporada, de janeiro a abril, é mesmo o segundo prato com mais saída, depois do arroz de sarrabulho à moda de Ponte de Lima. É uma especialidade da casa, que “tem um toque especial” da cozinheira Maria das Dores, que “a faz diferente”, tanto em arroz como à bordalesa. “Trabalhamos com os pescadores do rio Lima”, garante Miguel.

Restaurante Açude. Centro Náutico de Ponte de Lima, Caminho de São Gonçalo, Arcozelo. Tel.: 258 944 158. Web: restauranteacude.com Das 12h às 15h30 e das 19h às 22h, de segunda a sábado; das 12h às 15h30 ao domingo. Preço: 180-200 euros (1 lampreia), 100-120 euros (meia lampreia), 60-65 euros (dose individual – 3 toros)

(Fotografia de Rui Manuel Fonseca)


Enchidos e fumados

Produtos associados ao costume da matança do porco, ancestral em Ponte de Lima, ocupam lugar de destaque na sua gastronomia. O arroz de sarrabulho é o melhor exemplo disso. Mas também podem compor uma tábua de enchidos e fumados, produzidos localmente, ainda com sabor a tradição. A Quinta dos Fumeiros é uma das empresas que nasceu pela mão de filhas de Aurora Miranda do Rego, antiga criadora de suínos na freguesia de Poiares. As receitas com mais de 80 anos continuam a ser usadas na empresa familiar, cujo rosto é Deolinda Campelo, no processo de transformação de enchidos “de forma artesanal”. E que prometem levar clientes “a reviver o passado” e “momentos inesquecíveis com a família e amigos onde bastavam três coisas: boa conversa, bom vinho e, claro, boa comida”.

Quinta dos Fumeiros. Rua de Souto, 129, Poiares. Tel.: 258 763 766. Web: quintadosfumeiros.com Das 8h30 às 12h e das 13h às 17h30, de segunda a sexta. Preço: tábua de enchidos 14,99 euros (chouriço da serra D’Arga e de peru, salpicão do lombo)

(Fotografia de José Carmo)


Broa de milho

Pão tradicional preparado à base de farinhas de milho, trigo e centeio, e cozido em forno de lenha, começou como sustento do povo e chegou às casas senhoriais de Ponte de Lima pela mão das cozinheiras. João Matos, de 67 anos, antigo empresário de hotelaria que abraçou a panificação, reproduz a receita da sua mãe Rosa, que a cozia para consumo de casa. Faz duas fornadas diárias: às 4 horas, para abrir a porta às 6.30 horas com ela ainda quente; e às 17 horas. Coze cerca de 200 por dia e os clientes dizem-lhe que “é a broa mais saborosa” de Ponte de Lima. “Orgulho-me muito disso”, diz, comentando que o segredo está “nas quantidades e no isco (fermento)” e que já transmitiu o saber aos filhos Silvia e João.

Pastelaria Norton de Matos. Rua General Norton de Matos, 157. Tel.: 258 943 729. Web: instagram.com/p.nortondematos Das 6h30 às 20h.Não encerra. Preço: 3 euros/quilo

(Fotografia de Rui Manuel Fonseca)


Leite-creme

A sobremesa encontra-se referenciada em publicações de meados do século XIX como sendo confecionada nas cozinhas tradicionais das casas solarengas de Ponte de Lima, servida com açúcar à superfície, queimado com um ferro em brasa. O doce feito ao lume com leite, ovos, farinha de amido de milho, açúcar, canela e casca de limão, chegou até aos dias de hoje, e o restaurante A Carvalheira venceu três vezes seguidas o concurso de receitas de leite-creme promovido durante a Festa do Vinho Verde e dos Produtos Tradicionais de Ponte de Lima. “É o tetra”, brinca o proprietário José Gomes, que atribui “o segredo” às mãos da cozinheira Maria Teresa. O poeta minhoto António Manuel Couto Viana escreveu: “Sarrabulho sem remate de leite-creme é como mesa sem pão, que só no inferno a dão”.

A Carvalheira. Rua do Eido Velho, 73, Fornelos. Tel.: 258 742 316. Web: acarvalheira.com Das 12h30 às 15h, de terça a quinta; das 12h30 às 15h e das 19h30 às 22h, de sexta a domingo. Preço: 4 euros

(Fotografia de Rui Oliveira)


Loureiro e Vinhão

O vinho do Loureiro, casta branca da Região dos Vinhos Verdes que se caracteriza pela tonalidade citrina, aromas florais e frutados, acidez e notas de louro, é sinónimo de tradição em Ponte de Lima. Um território conhecido como Berço do Loureiro, um dos vinhos mais recomendados para acompanhar pratos tradicionais da região. E que também produz Vinhão, um vinho encorpado, de cor vermelha opaca, taninos marcantes e grande acidez. Quem gosta bebe-o na malga e escolhe-o para harmonizar com pratos fortes como arroz de sarrabulho à moda de Ponte de Lima, arroz de lampreia ou um bom naco de carne Minhota. A Adega de Ponte de Lima, fundada em 1959, conta atualmente com cerca de 1000 produtores de uva destas duas castas.

Adega de Ponte de Lima. Rua Conde de Bertiandos, 379. Tel.: 258 909 700. Web: adegapontelima.com/pt Das 8h às 12h e das 13h às 17h, de segunda a sexta; das 9h às 13h ao sábado. Preço: Loureiro entre 3,50 e 4,50 euros; Vinhão entre 4,50 e 5.50 euros.

(Fotografia de Rui Manuel Fonseca)


Sidra

A sidra e a cultura da maçã fazem parte da história de Ponte de Lima. Pomares espalhados por todo o território enraizaram a tradição das comunidades locais produzirem vinho de maçã de forma artesanal. E o seu consumo nas Feiras Novas. Miguel Viseu e a mulher Emanuelle Dalla Costa, com os sócios Tiago Sampaio e João Gomes, resgataram a bebida. Deram-lhe um aspeto arrojado e atraente para as novas gerações, mas produzem-na como manda a tradição, sem aditivos e com variedades de maçã típicas do Minho, como a Porta da Loja, Pipo de Basto, Verdeal e Malapio. E colocaram-na no mercado com o nome NUA. Cerca de 80% da produção, dizem, vai para exportação, para países como Estados Unidos da América, Japão e a Noruega.

NUA Cider. Web: nuacider.com Preço: NUA Cider nº2, 8,50 euros; NUA Hibryd Cider (maçã e frutos vermelhos), 9,50 euros.

(Fotografia de Rui Manuel Fonseca)



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