João Ferreira Oliveira: O Norte mudou? Eu também

Vista do vale do Ave. (Fotografia de Miguel Pereira/GI)
O que mudou? O Vale do Ave mudou muito nos últimos anos. Santo Tirso mudou muito. O Porto mudou muito. Portugal mudou muito. E tudo continua, paradoxalmente, igual. Talvez não tenhamos mudado, crescemos apenas.

Posso ser (verdadeiramente) sincero? Nunca gostei do Norte. Do sotaque. Da paisagem. Das pessoas. Detestava, ou achava que detestava, o sítio onde nasci. Houve mesmo uma fase, demasiado longa, admito, em que tinha uma certa vergonha das minhas origens. Não da minha família, dos meus pais ou dos meus amigos, nada disso, mas de uma certa ideia de Norte, de um Vale do Ave novo-rico, movido a Mercedes, BMW´s, baixos salários e ainda menor nível de educação. Estávamos nos anos 1980, 1990 do século passado, qualquer família bem sucedida tinha de ter muitos cavalos na garagem e uma confeção na parte de baixo da casa. A minha também.

Não és um (verdadeiro) homem do Norte, ouvi a frase vezes sem conta, quase sempre sem parêntesis. Na Universidade, Covilhã, perguntavam-me de onde era e eu instintivamente dizia de Guimarães, do Vitória, nunca de Santo Tirso, onde nasci. Nunca fui nem gostei de santos, achava o nome demasiado pesado para carregar às costas, Guimarães parecia-me mais leve, mais solar, apesar da História. Mais tarde, já a viver em Lisboa, quando me perguntavam de onde era eu respondia Lisboa, sem hesitar, sem sotaque, alterando de forma descarada a minha biografia.
Quem é que, por uma por outra razão, nunca teve vontade de reescrever a a sua biografia?

A cada Natal, a cada ida à terra, percebo que talvez isto não seja assim tão mau; que isto, afinal, até é bonito.

Nunca fiz por perder o sotaque, foi saindo, caindo, moldando-se, de tal forma que já não me recordo de como falava em criança, se trocava os bb pelos vv, é claro que trocava, se dizia bu em vez de avô, se sonhava com nêsperas ou magnórios. Talvez por isso, já em idade adulta, tenha mudado o meu fruto preferido para romã, diminuindo o risco de ser apanhado com um regionalismo na boca.

Não é que tenha tido uma infância e juventude infelizes – foi normal, sem traumas ou dramas, feliz, seja lá o que o que isso for –, a verdade é que me assumi desde cedo, e sem rodeios, incapaz de me tornar um embaixador da minha terra natal, tal como como tantos colegas e amigos da minha geração. Bem pelo contrário. Era mesmo um dos seus maiores detratores. Durante dez, quinze anos, quando alguém percebia que eu era, afinal um homem nascido no norte, lá vinham as odes à simpatia e autenticidade nortenhas, à comida nortenha, à paisagem nortenha e eu contrapor, a garantir (de forma férrea), que não era bem assim. Tinha também uma antipatia visceral, e ainda mais inexplicável, pelo Porto, uma espécie de ponto negro no meu mapa geográfico.

Está bom de ver que já não penso assim. O que mudou? O Vale do Ave mudou muito nos últimos anos. Santo Tirso mudou muito. O Porto mudou muito. Portugal mudou muito. E tudo continua, paradoxalmente, igual. Talvez não tenhamos mudado, crescemos apenas. Eu também. A cada Natal, a cada ida à terra (Vilarinho, Santo Tirso), percebo que talvez isto não seja assim tão mau; que isto, afinal, até é bonito; que as pessoas…. Vou encontrando beleza e cores onde antes apenas via preto e branco, uma espécie de turista na minha própria rua, sem moralismos nem preconceitos.

Que os nortenhos (e portuenses) que tanto «detestam» Lisboa não necessitem do mesmo tempo que eu para (re)descobrir a capital.

 

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