Crónica de João Mestre: a praia e um país de povos distintos

Vila Praia de Âncora (Fotografia: DR)
É uma generalização, tão falível como qualquer outra, mas o simples ato de ir à praia põe a descoberto as diferenças que fazem de nós um país de povos distintos. E ainda bem: que falta nos faz a uniformidade?

A praia ficava longe. Não seriam sequer 60 quilómetros em linha reta, mas uma ida à praia era sempre coisa para levar o dia inteiro. Hora e meia de carro para cada lado, às vezes mais, quando se apanhava um trator de tomate, descontando depois as paragens do meu pai para se abastecer de fruta pelo caminho. Contas feitas, metade das horas de Sol se iam em trânsito.

Mas era sempre um regalo o primeiro vislumbre de mar. Ainda hoje deve ser, para quem viva longe dele e o visite apenas em dias de praia. Poucas coisas unirão tanto os portugueses como o apelo da água salgada – será, porventura, o verdadeiro desporto nacional. No entanto, mesmo este hábito unificador demonstra como somos, na verdade, povos diferentes. Como quaisquer outros irmãos: partilhamos casa, mesa e sangue, mas não deixamos de ser pessoas distintas.

Este pensamento ocorreu-me quando, há coisa de um mês, descobri As praias de Portugal, um «guia do banhista e do viajante» que Ramalho Ortigão publicou em 1876. Sobre a baía do Tejo, escreveu que «o mar é tranquilo, sereno como um lago», indicado para «creanças fraquinhas» e «mulheres debeis». Compara depois com «o forte mar» do seu Porto, prescrevendo as ondas de Foz, Leça e Póvoa «aos fortes, ás grossas constituições limphaticas (…) que precisam do exercicio da resistencia e da lucta». A ida ao mar como finalidade terapêutica e de construção de caráter. Mergulhar no mar nortenho é quase uma insígnia de bravura.

Antes de avançar, devo clarificar que não tenho nenhum cavalo na corrida. A praia de que falava no início é Peniche, um meio-caminho térmico, geográfico e temperamental entre a foz do Minho e o Algarve. Nem norte, nem sul. O melhor e o pior de ambos, consoante a perspetiva. Mas fiz sempre as minhas evasões atlânticas da Figueira da Foz para baixo – e com uma certa propensão para o mar algarvio. As praias do norte, confesso, nem as conhecia bem, até que, há um par de anos, me vi gelado até aos ossos nas águas de Vila Praia de Âncora. Soltei um queixume. Em pleno agosto, o areal cheio de gente, e uma temperatura destas. «É mesmo assim», disse a minha anfitriã. Isto desencadeou uma conversa, um termo comparativo que foi uma revelação. «Vocês [leia-se, a metade sul] gostam de ir para a praia para torrar, nós vimos para refrescar.» Curiosa perspetiva.

A temperatura do ar é a mesma, 35 graus. O que anseia o sulista? Estar de molho em água morna e depois deitar-se na toalha, ao sol quente. O nortenho gosta de se sentar na areia, equipado com o tapa-vento, apanhar a brisa da Nortada, com o ocasional mergulho para refrescar. Não é só no temperamento que somos diferentes – é também na temperatura. Do ar, da água e do corpo.

Claro que isto é uma generalização. E claro que somos países diferentes. Tão diferentes quanto o nosso país é diverso. E tão diversos que nem esta simples generalização é infalível. O melhor é que estamos bem assim – já se imaginou o que seria se, de repente, toda a gente (realmente toda a gente) quisesse ir para o Algarve em agosto?

 

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