Ribatejo: Uma estrada com vinho dentro

Os 200 quilómetros da 118 acompanham a margem esquerda do Tejo, desde Alcochete a Alpalhão, no Alentejo. Estrada rica de paisagens e encontros, contém nela muitos destinos, como é exemplo o vinho ribatejano. Entre o calor do asfalto e a beleza da lezíria, descobrimos quatro casas – e outros tantos anfitriões que ajudam a compreender a sua história.

O Sol põe-se no horizonte. Não fosse a silhueta das serras de Aire e Candeeiros bem lá ao fundo, e seria mesmo o único elemento que a vista alcançaria. Tudo o resto é planície, tudo o resto é, neste caso, lezíria ribatejana, perfumada de sobreiro e videira, de tal forma que nem se percebe a existência do Tejo, a um mero quilómetro de distância. Mais perto, porém, à beira da mesa de piquenique, vemo-nos rodeados de vinhas de syrah e alfrocheiro. No prato, magníficos petiscos regionais, cenário preparado a preceito para celebrar o melhor do vinho ribatejano.

Estamos em terras da Quinta da Lagoalva de Cima, um dos mais reconhecidos produtores da região (a CVR Tejo contabiliza perto de uma centena). A Lagoalva fica a apenas 15 quilómetros de Santarém e exibe séculos da história do Ribatejo. Razão mais do que suficiente para iniciar aqui este on the road, embora pela mente também já andasse a ideia deste piquenique. «Penso que no Ribatejo somos o único local que oferece esta possibilidade de imersão total na cultura do vinho», palavras de Márcia Alegria.

Nesse inicio de tarde já Márcia, uma das responsáveis pelo projeto de turismo da Lagoalva, acompanhara um passeio de charrete por esta propriedade de mais de 500 hectares – cuja criação remete para o remoto século XII, momento em que o rei a entregou à Ordem de Santiago pela bravura em combate. Hora e meia depois, já pelo próprio pé, diante do bonito casario (refira-se também o interior da capela), Márcia fala sobre quando estas terras passaram a ser propriedade dos descendentes do Conde de Palmela, assumindo-se o seu lado agrícola, que hoje ainda vigora.

Falar da lezíria ribatejana é falar de um território dedicado à produção agrícola, facto que, aliás, se encontra na génese da estrada que percorremos, a nacional 118, outrora conhecida como a marginal do rio Tejo. A sua construção surgiu da necessidade de escoar os produtos agrícolas a partir do momento em que o curso de água perdeu essas mesmas funções.

Trata-se, de facto, de um dado importante para compreender não só o que nos rodeia, mas também o que nos espera nesta viagem. Quem alerta, e bem, para o pormenor, é Filomena Justo, da Quinta Casal Branco, propriedade de 660 hectares e 200 anos de atividade. E em boa hora o fez, ajudando a explicar partes do percurso de 15 quilómetros até à sua porta, atravessando o centro de Alpiarça, depois Almeirim, que ainda mantém algum do seu casario antigo, mas sobretudo os quilómetros de campos de cultivo onde o tomate parece ser rei – várias fábricas de transformação residem neste concelho.

A adega da quinta, remodelada em 2004, guarda ainda os velhos lagares, onde ainda hoje se pisa a uva. Para Filomena, que lida com o turismo diariamente, trata-se de um lugar muito especial, porque representa a mistura entre o passado e a atualidade, combinação que revolucionou o Casal Branco do ponto de vista turístico, «permitindo uma experiência bastante mais gratificante para os visitantes e um outro grau de envolvimento e exigência» de parte da casa.

Faz sentido. Para além da adega, a obra trouxe também uma nova loja e um bar de provas, onde também se serve uma refeição diária, sem menu e sempre mediante marcação – importa não perder de vista o naco de vitela em tinto da casa. Estes espaços fazem parte do programa de visitas, que inclui todos os passos do processo de feitura do vinho, desde o inevitável passeio pela vinha à fase do engarrafamento, finalizando na indispensável prova dos diversos Casal Branco, acompanhada por produtos regionais – queijos, chouriços, pão caseiro.

Uma manhã bem passada. «Poderíamos por aqui ter ficado o resto do dia», diz Filomena, afinal no Casal Branco não faltam motivos de interesse, que se prolongam muito para lá do domínio vínico. A propriedade, uma presença de séculos na lezíria ribatejana, respira história por todos os poros, expressa por exemplo nos jardins da casa Lobo Vasconcelos e na coudelaria, onde trotam cavalos puro-sangue lusitano. «São outros dois polos de interesse, disponíveis ao visitante e incluídos no programa de visitas. É uma recomendação que faço por que penso oferecer uma dimensão histórica mais vasta da nossa “casta”.»

A história da Casa Cadaval alinha pela mesma longevidade, não fosse este símbolo ribatejano caminhar para quase 500 anos de existência. Encontramo-la após nem dez minutos de passeio, logo após o Tejo surgir à vista, ainda a aldeia de Muge não começou. A antiguidade desta casa é obviamente impressionante, tanto maior e mais interessante que se soube manter sempre na mesma família. Tudo se passa na herdade de Muge, com 5.400 hectares de propriedade, cinquenta deles dedicados à produção de vinho, num portfólio de atividades que inclui igualmente exploração agrícola e uma forte atividade equestre, paixão assumida por Teresa Schönborn, quinta descendente da família e atual proprietária.

É percetível, aliás, que a ligação entre estas três casas ultrapassa a simples produção de vinho, facto que parece ter despertado um pequeno movimento de união entre ambas – a que se junta a vizinha Quinta da Alorna. A primeira decisão visível intitula-se Novas Colheitas, um evento já com duas edições, sempre em abril, que consiste num dia de provas de vinho nas quatro adegas. «Ainda há muito por fazer, mas é um começo para uma região que necessita de mais atenção e visitas turísticas», diz Filomena Justo. «Faz sentido este trabalho ser realizado em conjunto.» A viagem continua para sul, ultrapassando o coração ribatejano. O traçado, totalmente retilíneo, convida a admirar o horizonte mas também a algumas paragens.

Até chegar à Companhia das Lezírias, derradeira escala, vão uns 40 quilómetros e uma boa meia hora de viagem. Surgem pelo caminho Salvaterra de Magos, com a sua inconfundível praça de touros, lá à frente cruza-se o esquecido rio Sorraia, Benavente e finalmente Samora Correia, ao quilómetro 20 da EN118.

A Companhia das Lezírias seria um forte candidato ao grupo não fosse a distância geográfica. É certo que a sua história é um pouco mais curta e menos nobre quando comparada com as outras três casas, mas não há nada em todo o seu resto que não se equipare, seja em termos de dimensões (150 hectares só de vinha), de atividades (cavalos lusitanos e turismo de natureza), e mesmo em termos de projeto turístico – também aqui se sabe, e pratica, que vender uma experiência relacionada com vinho é muito mais apelativa do que apenas vender uma garrafa.

Para percebê-lo, basta entrar na sua loja de vinhos e percorrer a adega, visita que culmina na lindíssima sala de ânforas argelinas, ambas remodeladas há cerca de dois anos. Conforto, bom gosto e respeito pela história, três ideias que imediatamente saltam à vista. Claro que há depois a imensa paixão de Bernardo Cabral, anfitrião e enólogo da casa, que tanto se entusiasma com as vinhas plantadas em redor da adega, uma novidade, como se inspira com o ninho de uma coruja sobranceiro às mesmas vinhas. «Nos campos da Companhia das Lezírias reside a maior concentração de corujas em toda a Europa, o símbolo do Tyto Alba, uma das nossas gamas de vinho.»

A adoção destas corujas em plena vinha, assim como os estudos sobre as mesmas, não só simboliza as práticas desta casa como também a diferencia das demais. «Há uma enorme preocupação com práticas ecológicas, que são transversais a todos os projetos da Companhia das Lezírias. Como gestora de 11 mil hectares de floresta, como empresa pública, faz sentido apostar nesse tipo de futuro.»

A maior expressão dessa ideia talvez não se revele aqui, no centro equestre, nem sequer nos doze charmosos bungalows de madeira com a sua piscina comum, mas a um par de quilómetros Tejo adentro, no EVOA, o maior espaço de visitação e observação de aves do país. O projeto não é propriamente uma novidade, mas talvez ninguém ainda se tenha lembrado de o associar à CL, e sobretudo a integrá-lo numa prova de vinhos.

É claro que não fossem as palavras de Bernardo e essa relação seria menos lúcida, afinal há pouco de encontro nas atividades à primeira vista. Mas quando olhamos para o sapal, as lagoas e toda aquela natureza, é difícil esquecer aquele predador noturno a ajudar o trabalho do enólogo, com tudo o que isso representa.

 

Casa Cadaval
Rua Vasco da Gama, Muge (Salvaterra de Magos)
Tel.: 243588040
Web: casacadaval.pt
Atividades: loja, provas, passeios pela herdade, demonstrações equestres, cruzeiros no Tejo. Atividades se sujeitas a marcação.

Quinta da Lagoalva de Cima
Alpiarça
Tel.: 243559070
Web: lagoalva.pt
Atividades: visita à quinta (inclui cavalariça, picadeiro, capela, adega e prova; este passeio também pode ser feito de charrete), demonstrações equestres, passeio a cavalo no campo, piquenique na vinha, curso de vinhos. Atividades sujeitas a marcação.

Quinta Casal Branco
EN118, km 69 (Almeirim)
Tel.: 243592412
Web: casalbranco.com
Atividades: Visitas guiadas à adega, demonstrações e passeios equestres. Atividades sujeitas a marcação.

Companhia das Lezírias
EN 118, entre Porto Alto e Alcochete (Vila Franca de Xira)
Tel.: 212349016
Web: cl.pt
Atividades: loja, visita guiada à vinha e adega; aulas de equitação (centro equestre), birdwatching, passeios pedestres (evoa.pt)




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