Vale do Ave: Passear e comer bem em terras de passagem

Foi em tempos um pólo industrial de relevo e é muitas vezes reduzido a mero ponto de passagem entre destinos turísticos mais apetecíveis. Sob um olhar atento, porém, a região transborda cultura, história, boa comida, e uma vivacidade citadina harmoniosamente encaixada na tranquilidade do campo, que seduziu figuras como Camilo Castelo Branco, escritor que fez destas terras sua casa e onde morreu.

De comboio, Vila Nova de Famalicão não fica a mais de 45 minutos de viagem do Porto. É uma das breves paragens no percurso que tem como destino o coração do Minho, a cidade de Braga. Ao chegar à estação, que celebra este ano o seu vigésimo aniversário, ergue-se ao fundo a antiga fábrica da Boa Reguladora, aquela que chegou a ser a maior relojoeira da Península Ibérica. Hoje já não é o que era, mas nem por isso a cidade se deixou parar no tempo. Antes, não deixa esquecer o que já passou, preservando a memória das suas gentes em mais de uma dezena de museus que detém pelo território.

O mais recente foi inaugurado no dia 1 de junho pelo presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, no edifício da Fundação Cupertino de Miranda, empresário e filantropo famalicense. Trata-se do Centro Português do Surrealismo, uma nova galeria onde vai ser exposta, de forma rotativa, a coleção de mais de três mil obras da Fundação, que reúne 130 artistas do movimento surrealista português, entre os quais Mário Cesariny e Artur Cruzeiro Seixas.

«A indústria no Vale do Ave surge em 1845 com uma primeira fábrica, a Fiação e Tecidos do Rio Vizela, em Santo Tirso»

A cidade tem ainda espaços dedicados a outros domínios, desde os caminhos de ferro a personalidades que marcaram o concelho até ao património industrial da região.

O Museu da Indústria Têxtil da Bacia do Ave foi criado em 1990, e por essa altura tinha já mais de 100 anos de história para contar, através de antigas máquinas, registos de empresas e até testemunhos de quem viveu esses tempos. «A indústria no Vale do Ave surge em 1845 com uma primeira fábrica, a Fiação e Tecidos do Rio Vizela, em Santo Tirso», começa José Lopes Cordeiro, professor e investigador da Universidade do Minho, especialista no património industrial da região e fundador do museu. «Nessa altura só havia fábricas de tecelagem no Porto e os fios eram importados de Inglaterra, assim como o carvão. Para acabar com essa dependência foi necessário criar uma fábrica de fiação e recorrer a energia hidráulica, daí ter surgido a indústria na Bacia do Ave», conclui.

Museu da Indústria Têxtil da Bacia do Ave (Fotografia: Paulo Jorge Magalhães/GI)

Na segunda metade do século XIX surgiram cada vez mais empresas, até serem quase duas centenas. Nos dias que correm não há tantas, mas o território continua a ter uma forte presença industrial, com unidades fabris que se fundem na paisagem rural das periferias, fixadas nas margens do rio Ave ou dos seus afluentes e que vão muito para além dos têxteis. Por estas terras fazem-se pneus, sapatos, câmaras e lentes, bolachas e até chocolates.

Por terras de Camilo

E se a produção industrial não é coisa estranha à região também a criação intelectual brotou neste concelho. Um dos nomes mais sonantes do legado cultural da cidade é Camilo Castelo Branco e a casa onde o romancista viveu com Ana Plácido, em S. Miguel de Seide, é hoje museu dedicado à vida e obra do escritor. O edifício da Casa de Camilo sofreu várias alterações ao longo dos anos, e na década de 1950 foi recuperada a traça original, assim como a organização interior da residência, recriando o ambiente que ali se vivia no século XIX. No complexo ao lado, da autoria de Álvaro Siza, funciona o Centro de Estudos Camilianos que compreende ainda um auditório, para iniciativas culturais e salas de exposições temporárias. Ao redor, estende-se a paisagem rural que inspirou Camilo a escrever muitas das suas histórias. O autor de «Amor de Perdição», sua obra mais aclamada, baseava-se muitas vezes em experiências da sua vida, marcada pelas sucessivas tragédias que culminaram no seu suicídio, a 1 de junho de 1890.

No quarto inspirado em Camilo predominam os tons mais claros, «já que era um romancista», nota a proprietária.

Para dormir no quarto de Camilo, no entanto, é preciso voltar ao centro da cidade, ao Vila’s House, um edifício reabilitado por Juliano Castro e Renata Almeida em 2013, com um conceito inovador. Esta guest house não tem receção, pelo que os hóspedes recebem códigos de acesso à casa e aos quartos a cada check-in. Pelos dois pisos estão distribuídos dois quartos standard e quatro apartamentos com cozinha equipada. «Todos eles fazem referência a figuras ilustres de Famalicão», lembra Renata, entre eles Bernardino Machado e Cupertino Miranda.

No piso superior fica o quarto inspirado em Camilo, «de tons mais claros, já que era um romancista», nota a proprietária. Aproveitaram o pé direito alto para fazer um duplex de decoração elegante e ambiente acolhedor que as largas vigas de madeira lhe conferem. Complementam-no as luminosas janelas com vista para a Praça 9 de Abril, ponto de encontro de famalicenses e visitantes em dias de festa como o Carnaval ou as Antoninas (que acontecem já este mês), duas das celebrações mais populares da cidade, e que lhe dão fama pelos arredores. Nestas alturas toda cidade sai à rua, e não há quem não se junte à folia. Que é afinal, uma boa forma de abrir o apetite.

Mesas minhotas com certeza

Não estivessemos no Minho, talvez a lista não fosse tão longa. Mas já que é de boa comida que se fala, há por estes lados sugestões para todas as preferências, dietas e carteiras.

A apenas alguns passos do Vila’s House, na Praça D. Maria II há uma casa típica que é de paragem obrigatória. O nome é Sara Cozinha Regional, mas há muito que se tornou conhecida por Sara Barracoa. «O meu avô tinha uns barracos onde guardava os cavalos na altura e a minha mãe ficou conhecida por Barracoa» explica Fernanda Dias, a atual proprietária do restaurante de família. Aqui serve-se comida regional minhota e o local é ainda conhecido por ter sido ponto de paragem de Camilo Castelo Branco, na taberna que ali existia na altura. A sala com ar rústico onde o tempo parece ter parado recebe clientes que vêm de todo o lado à procura dos pratos caseiros e de doses generosas. Filetes com salada russa, vitela assada, cozido à portuguesa e os rojões à minhota, que são premiados «em todos os concursos que participam», garante Fernanda.

Por estes lados, se a cozinha regional encontra embaixada em várias portas, também os pratos de autor e a experimentação têm lugar à mesa. Destacam-se as criações do chef Renato Cunha, que há 12 anos comanda o Ferrugem, acolhedoramente instalado num antigo estábulo do século XVIII, na aldeia de Portela. O ponto de partida do que aqui se faz é mais uma vez a gastronomia minhota e a cozinha tradicional portuguesa, mas com uma interpretação mais contemporânea, «sem fundamentalismos», nota o chef. Há três menus que dão a conhecer as criações de Renato Cunha: o Minho, Recortes de Portugal e o Ferrugem, de quatro, cinco e seis momentos, respetivamente. Para harmonizar com uma vasta e eclética seleção de vinhos, ainda que com predominância do Douro e dos Vinhos Verdes, não fosse o chef um colecionador assumido.

Capicua (Fotografia: Miguel Pereira/GI)

Casas mais recentes e dedicadas a diferentes tipos de cozinha e serviço também têm vindo a destacar-se entre a oferta da região, atraindo até curiosos das localidades vizinhas, que voltam mais tarde, convencidos pela experiência.

A meio caminho de Guimarães, na vila de Joane o Capicua e o Caso são em tudo opostos, menos na primazia que dão à qualidade dos produtos e à sua confeção. O primeiro apresenta uma carta recheada com pizas caseiras, de massa fina e estaladiça, com combinações que surpreendem, como a Vai Litos, feita com dois tipos de cogumelos frescos, mozzarella, chouriço e azeite com infusão de trufa. Mas, atenção, «não é um restaurante italiano», esclarece Bruno Vieira, o proprietário. Mais uma extensão da cozinha lá de casa, onde tudo é feito de maneira despretensiosa e da forma mais familiar possível. Os enchidos chegam diretamente do talho do pai, Raul Vieira, feitos artesanalmente, «na mesma estufa que a minha avó utilizava há 50 anos», lembra Bruno.

Já o Caso é uma autêntica viagem à América Latina, tanto pela música como pelos generosos nacos de carne grelhada, onde o T-bone, a pesar mais de um quilo, é a estrela da carta. Diogo Brito é o mentor do projeto, mas é a mãe, Ofélia Silva, quem comanda a cozinha. Cada corte chega à mesa com três acompanhamentos à escolha, de que podem ser exemplo a batata doce às rodelas, servida com amendoins doces, os grelos salteados ou até o arroz basmati, aromatizado com um toque de canela. Uma refeição cheia de sabores quentes e reconfortantes, para acabar com o guloso bolo de pipocas e marshmallows, criação da casa. «Caso» para dizer que o que não falta por estas paragens são boas moradas onde saciar o apetite.

Na outra margem do Ave

Há um troço da linha ferroviária que liga Porto a Guimarães que acompanha de perto as sinuosidades do rio Ave. Nesse percurso, depois dos vastos campos de pasto e cultivo que ladeiam a viagem de um e de outro lado, e da breve passagem pelas instalações da Camac, a única fábrica de pneus de capital português, mostra-se por fim Santo Tirso, berço da indústria têxtil da região, legado que não se dispersa na paisagem. Deve o seu nome e fundação ao mosteiro beneditino aqui edificado no século X e que ainda hoje é cartão de visita, erguido em jeito de forte à entrada da cidade.

Não é, no entanto, o único monumento religioso que atrai visitantes ao município. Na freguesia de Roriz, há dois mosteiros, também eles beneditinos, que se fazem bem conhecer, não só pelas suas majestosas construções, mas também pelas especialidades que ali levam curiosos de todo o país. De um lado, são as bolachas no Mosteiro de Santa Escolástica, um edifício com mais de 80 anos, que fazem as delícias de quem aqui chega. «As primeiras irmãs vieram da Bélgica e trouxeram algumas receitas de lá, mas com o tempo foram adaptando», conta a irmã Maria do Carmo, Madre Superiora do mosteiro.

A base das bolachas são os ovos, manteiga e açúcar, mas cada uma das seis variedades, a saber os rochedos, lagartas, Maizena, areadas, pão de amêndoa e sablé, têm a sua adaptação. O sortido é vendido em caixas de meio ou um quilo, e está disponível todos os dias, basta tocar à campainha instalada à porta da cozinha, onde paira um aroma doce. Mas a partir de novembro a irmã Maria do Carmo avisa: «só por encomenda, que senão não conseguimos dar conta do recado».

Licor de Singeverga (Fotografia: Miguel Pereira/GI)

Para acompanhar da melhor forma estes biscoitos, ali ao lado os monges do Mosteiro de Singeverga produzem o afamado licor de seu nome, o único em Portugal que é exclusivamente monástico. Receita original, elaborada há mais de 70 anos a partir da destilação direta de diversas especiarias e plantas aromáticas. O licor, a par do mel e canela, é também ingrediente essencial e que marca o sabor do mais recente doce da cidade, o pudim Condessa Aldara, da confeitaria Algarve, vencedor do concurso lançado no início do ano pela câmara municipal de Santo Tirso, com vista a criar um novo produto gastronómico.

Bem ao jeito da doutrina de São Bento, padroeiro da cidade, todos são bem-vindos a provar as especialidades tirsenses, que não ficam por aqui. Há ainda uma outra, talvez a mais conhecida, que promove o nome da terra. É na centenária Confeitaria Moura, localizada bem no centro da urbe, e que completa este mês 126 anos de existência, que se fazem os originais jesuítas e limonetes de Santo Tirso. «A base dos bolos é a nossa massa folhada», esclarece Alda Moura, sócia-gerente e membro da quarta geração da família Moura. «A receita foi trazida por um pasteleiro que o meu bisavô trouxe para cá de Bilbau», conta. Desde aí tem-se mantido segredo de família, que continua a meter as mãos na massa. «Já temos quatro membros da quinta geração envolvidos na produção», lembra Alda. Ao balcão, no entanto, o mais provável é encontrar a Dona Teresa, que há mais de 50 anos é uma das caras sorridentes que recebe quem aqui passa.

Confeitaria Moura (Fotografia: Miguel Pereira/GI)

Depois do palato satisfeito é tempo de passear pelas margens do Ave, a que nem a reputação de ser um dos mais poluídos do país, lhe retira o encanto sob o sol poente de um fim de tarde primaveril. Ou, para ver de outra perspetiva tudo o que aqui se fala, vale a subida até ao monte sobranceiro à cidade, onde, junto ao imponente santuário de Nossa Senhora da Assunção, fica um miradouro com vista sobre o Vale do Ave, com um sossego que lhe paira de mansinho, sem perturbar a vida e os afazeres de uma terra que não para.

Terras de cultura

Famalicão conta com uma vasta programação cultural na Casa das Artes e no mais recente espaço de criação do Teatro Didascália, o Fauna. Instalado na Quinta da Bemposta, em Joane, tem um programa regular dedicado ao teatro, circo contemporâneo e música. Música e cinema é também o que não falta durante o verão no anfiteatro ao ar livre do Parque da Devesa, que é por si só uma atração em dias soalheiros. Com 27 hectares de extensão, é atravessado pelo rio Pelhe, um afluente do Ave, e composto por percursos pedonais. Um refúgio no centro da cidade.

Santo Tirso também não se deixa ficar atrás. Distribuídas por vários espaços e jardins da cidade é de descobrir as mais de 50 esculturas da autoria de artistas de todo o mundo, e com curadoria do Museu Internacional de Escultura Contemporânea.

Algo está a fazer com que o sistema não consiga mostrar a ficha ténica desejada. Pedimos desculpa pelo incómodo.

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