Foi no ano passado que os britânicos The Guardian e The Telegraph incluíram a Salema entre as melhores 50 praias em todo o mundo, e uma das melhores na categoria «famílias». Uma distinção relevante, e reveladora, colocando a desconhecida praia algarvia ao lado de paragens mais exóticas como Tailândia, México ou Bora Bora.
Por cá, parece que ninguém deu conta do acontecimento. Ninguém, com um par de pequenas exceções como é exemplo a equipa de «olheiros» do Vila Vita Parc que, nesse mesmo ano, expandiu o universo da chancela hoteleira e inaugurou seis casas de alojamento na pequena terra piscatória.
Na verdade, a história não passa de uma enorme coincidência, isto porque a relação com a Salema já vem de longe, quando algures no início do século, os Pohl compraram uma pequena casa à beira-mar para as suas próprias férias. Admiravam o lado tradicional da aldeia, a sua rusticidade, a presença do mar e dos pescadores, um ambiente ainda autêntico que contrastava com a «albufeirização» dos pequenos aglomerados mais para o centro algarvio. As oportunidades foram surgindo e as compras aconteceram. Em 2016 decidiram finalmente oferecer meia dúzia de casas de alojamento, mantendo o mesmo espírito que os levou para lá: uma experiência autêntica.
A praia é, obviamente, o centro nevrálgico e denominador comum de todos os que habitam e visitam a Salema. Em frente à vila pode-se alugar sombreros e espreguiçadeiras, receber uma massagem ou alugar uma prancha SUP para dar um passeio.
Trazer esta história é importante, porque ela demonstra as mesmas razões que levaram a Evasões até Salema, o tipo de experiência que a pequena localidade pode oferecer mas também uma imagem da sua história e a transformação eminente de aldeia piscatória para aldeia turística.
Vamos à explicação: os seis alojamentos do Vila Vita Collection encontram-se espalhados pela povoação. Há casas no topo da falésia e outras à beira-mar. As primeiras, representando o lado mais contemporâneo da Salema, misturam recolhimento e tranquilidade com uma vista privilegiada sobre o mar, mas comprometem claramente em autenticidade para as que, cá em baixo, adormecem com o som da babuja – palavra algarvia para a espuma que se forma no rebentamento das ondas do mar.
A preferência do hóspede facilmente recairá sobre a experiência do coração da vila, que, depois do rebuliço veraneante, em meados de setembro, volta de novo a saber a aldeia. A Rua dos Pescadores, a artéria principal, é o mais antigo legado histórico da Salema, comprovado pelas imagens antigas em vários dos seus restaurantes. A viela que sobe a ladeira é quase exclusivamente flanqueada por casas térreas contíguas, bordejadas a azul, entrecortadas por travessas que aqui e ali nos dirigem para o azul do mar. Embora os materiais «menos nobres» abundem, trata-se de um amontoado com charme, mesmo quando se pensa nas típicas casas cobertas de azulejos.
A praia é, obviamente, o centro nevrálgico e denominador comum de todos os que habitam e visitam a Salema. Em frente à vila pode-se alugar sombreros e espreguiçadeiras, receber uma massagem ou alugar uma prancha SUP para dar um passeio – as águas transparentes merecem o esforço –, mas também se pode procurar isolamento, afinal são cerca de 500 metros de areal sem contar com a Atalaia do Sargo, outros tantos para oeste que renascem a cada maré vazia.
Tanta areia junta convida a longas caminhadas, especialmente convidativas ao fim do dia. Poucos sabem, no entanto, que para além dos benefícios de saúde, esta caminhada pode igualmente oferecer uma viagem com milhões de anos. Falamos das pegadas de dinossauro, assunto praticamente desconhecido por estas bandas, para os veraneantes que por descuido até colocam a toalha em cima de alguns exemplares, mas até mesmo para as gentes locais.
Há três núcleos de pegadas, dois deles na própria praia. Na zona oriental encontra-se o mais difícil de observar, a pista da Lomba das Pias onde são visíveis nove marcas encrostadas numa laje. Próximo das escadas de madeira que acedem ao lado direito da praia localiza-se outra pista, imperdível a partir das próprias escadas. Finalmente, para o terceiro grupo e talvez o mais interessante, é necessário sair da Salema e seguir pelo trilho que acompanha a costa até à desconhecida Praia da Santa, na direção de Sagres. Como não existe qualquer sinalização a aventura exige paciência e muita atenção, um esforço plenamente recompensado.
Quase se pode falar e pensar na Salema como um pequeno hub de peixe fresco, sorte a nossa ainda não ter caído nos grandes holofotes gastronómicos.
Vítor Duarte, nascido e criado na Salema, pode saber pouco do assunto, mas raros são os que servem peixe melhor do que ele – antigo pescador e responsável que é pelo amanho do pescado. O seu Boia, escancarado para a praia, é o poiso quando a barriga começa a dar horas. O restaurante esconde uma história de um século e três gerações, talvez a mais antiga de toda a aldeia. Mas enquanto Vítor e a sua mulher souberam modernizar a velha taberna, hoje uma belíssima sala com vista para o mar, ao menu não alteraram uma só vírgula: às habituais douradas, robalos e sargos, junta as menos conhecidas anchovas, salemas e o seu atum especial, tudo vindo da diretamente da lota de Sagres.
Esta relação autóctone é não só uma caraterística, mas acima de tudo uma qualidade dos restaurantes da Salema. O Lourenço, outro marco gastronómico, aberto há quase 20 anos, também se abastece na vizinha Sagres, e não fossem as contingências fiscais, era mesmo ali, na praia, que a transação comercial se fazia. O senhor Fernando, o anfitrião, responsabilidade que divide com a mulher, os dois filhos e a sobrinha, gosta de realçar a sua cataplana e as lulinhas fritas com molho secreto, mas a travessa de peixe fresco e que corre em redor das mesas faz-nos salivar por muito mais.
É preciso esperar pela noite para experimentar as maravilhas do Água na Boca, de Paulo e Irene Castelo, última paragem obrigatória. Aberto só para jantar, propõe um ambiente mais formal e solene, desfeito pela cortesia da equipa e do próprio Paulo. Foi, aliás, essa preocupação para com o cliente que originou a recente abertura de uma segunda sala de refeição, contigua ao restaurante mas fechada, para maior sossego e privacidade. Pela mestria de Irene vencem obviamente os peixes, embora as carnes também deslumbrem, sobretudo para quem vem de fora. Neste departamento as estrelas são o javali, o borrego estufado, bochechas de porco. Apetitosas, mas não o suficiente para nos desviarem do polvo, em versão feijoada e servido em caçarola com amêijoas.
De tantas semelhanças – no cardápio, na qualidade, até no facto de serem restaurantes familiares – quase se pode falar e pensar na Salema como um pequeno hub de peixe fresco, sorte a nossa ainda não ter caído nos grandes holofotes gastronómicos. É de aproveitar, enquanto é tempo.
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