Melgaço: O lado selvagem que esconde o Alto Minho

Alvarinho, a baga dourada das vinhas regionais pode ser o mais popular cartão de visita da vila, mas não é o único. No território mais a norte de Portugal, terras raianas separadas da Galiza pelo rio Minho, encontram-se histórias, costumes, mitos e modos de vida ancestrais.

«O rio nunca parece igual». De um lado e do outro erguem-se sobreiros, carvalhos e dois países separados por um rio. Pintam em tons de verde o manto espelhado e partilham com ele a fauna que não escolhe margem, caso das garças que esvoaçam sobre as águas, os patos e até, com alguma sorte, lontras. Mas não é certo de se ver em todas as ocasiões o mesmo cenário. Daí que José Hipólito diga, «O rio nunca parece igual». E essa certeza, tem-na de todas as vezes que salta para as águas fronteiriças do rio Minho, e já o faz há mais de 30 anos.

Ao longo do passeio, José vai chamando a atenção para pormenores que facilmente ficariam perdidos aos olhos de quem pela primeira vez encara esta paisagem. «Do lado português, o fundo é pintado de preto e os números de branco, e do lado espanhol é ao contrário». Fala dos números que identificam as pesqueiras, construções seculares, constituídas por fileiras de blocos em pedra que se estendem pelas margens e eram utilizadas para pesca do sável, salmão e lampreia. Hoje, as que ainda têm licença de utilização mantêm viva a tradição deste tipo de pesca artesanal que se acredita ter origem pré-romana.

São também estas estruturas as responsáveis pelos fortes desníveis que dão origem aos rápidos ao longo do rio, e que fazem do Minho lugar de eleição para a prática de rafting. Principalmente porque a abundância de água o permite fazer durante todo o ano. «Existem centenas de pesqueiras entre Melgaço e Monção», continua José Hipólito, instrutor da Melgaço Radical, empresa de desportos de aventura, que além de rafting tem também programas de canoagem, rapel, slide ou parapente.

(Fotografia de Artur Machado/GI)

É na barragem da Frieira, no município galego Crecente, que normalmente começa a descida do rio. Ora tranquila e ao sabor da corrente que banha sossegada quem se lhe quiser juntar para um mergulho, ora mais atribulada e enérgica, quando se formam remoinhos, ou as águas correm mais velozes ao descer as pesqueiras, batendo com força e deixando rastos de espuma. De uma maneira ou de outra, desta perspetiva o Minho deixa-se ver de uma forma que encanta no seu poderio natural, que tanto mostra a fragilidade do seu ecossistema como a harmonia com os que nele fazem a vida. A cada passo ouve-se o comboio passar do lado galego, ladeiro à margem, como um aviso de que ali perto continuam os afazeres diários de idas e voltas, horários pensados ao minuto e outras agitações, até agora apagadas da memória de quem por aqui já se sentia parte do rio.

Mitos e costumes

Mais acima, em altitude, Castro Laboreiro também esconde os seus segredos. Entre planícies pinceladas de rosa, amarelo e verde, que parecem saídas de uma tela impressionista, paira uma energia que não deixa indiferente quem por aqui passa. As serras de picos rochosos guardam vestígios dos povos que há milhares de anos habitaram nesta região. Exemplo disso é a maior necrópole megalítica da Península Ibérica, instalada no planalto.

«Algumas das personagens mais conhecidas de Castro Laboreiro são pedras»

Esta cultura ainda se mantém viva através de costumes, tradições e até lendas e mitos, que vão passando de geração em geração. «Algumas das personagens mais conhecidas de Castro Laboreiro são pedras», conta Tânia Vilas Boas. Fala dos curiosos penedos que se avistam aqui e ali, elevados na paisagem e que se assemelham a homens narigudos, tartarugas, cães e até Darth Vader, mas tudo depende da perspetiva e imaginação de cada um.

Quando a noite cai, e o misticismo acompanha a neblina, é altura de encontrar poiso por estas bandas, e a Casa da Macheta é o sítio ideal para um refúgio em família ou com amigos. Os pais de Nuno Fernandes são os responsáveis pela transformação desta casa castreja numa casa de campo pronta a receber quem queira fugir do alvoroço citadino. «Foi aqui que a minha mãe e o irmão nasceram», conta Nuno. «Foi aproveitada a zona da habitação, a antiga corte dos animais que ficava por baixo e o linheiro e palheiro que ficavam por cima», explica ainda.

O resultado foi uma ampla casa, com três quartos decorados ao pormenor, um deles suíte, cozinha equipada, uma acolhedora lareira, que em tempos invernosos sabe bem, sofás, um armário de escola do tempo do Estado Novo, que funciona agora como louceiro, e um belo terraço para os dias de calor, que tem uma particularidade curiosa: «Encontrámos uma eira de malhar centeio com mais de cem anos sobre a qual o antigo terraço fora construído», conta Nuno. Ao chegar, o hóspede tem direito a um «miminho» de produtos locais, alvarinho incluído, e ao pequeno-almoço é só esperar que o padeiro deixe à porta um saquinho cheio de coisas boas. De barriga cheia é tempo de partir para outra aventura.

À entrada do Parque Nacional da Peneda-Gerês, a empresa Montes de Laboreiro oferece uma série de atividades para explorar o território, incluindo canyoning no rio Laboreiro e seus afluentes. Esta prática permite descobrir a palmo as sinuosidades, o relevo, as pequenas cascatas e obstáculos que se formam no seu curso, bem como a flora e a fauna do rio.

(Fotografia de Artur Machado/GI)

Pelos caminhos que levam, em curva e contracurva, ao cimo da vila, despegada de agitação e do tempo, veem-se manadas de cachenas a passear pela estrada. São acompanhadas de perto por cães castro-laboreiro, raça autóctone da região, criados aqui para garantir a sua continuidade.

Chegando ao topo da povoação encontra-se ao fundo, no limite da estrada, um miradouro que abre vista para um cenário capaz de abismar – onde montanhas se encadeiam, até no horizonte se notarem apenas os seus esboços, abraçados por uma névoa que torna o sítio ainda mais mágico. Com olhar atento, nota-se numa dessas elevações as ruínas da antiga muralha e castelo que em tempos coroavam a montanha.

Para lá chegar há que subir a serra, que leva também a lagoas e cascatas escondidas, e pelo caminho dar de caras com várias plantas que dão cor ao passeio e que Sónia Nogueira, da Just Natur, outra das empresas que organiza passeios e atividades pela região, tem todo o gosto em identificar. Temos as giestas, cujas raízes «têm pequenos bolbos que ajudam a fortalecer a terra», o carvalho, que «é o bombeiro da floresta», as urtigas, «ótimas para fazer quiches, sopas e até queijos», os medronhos, o tomilho selvagem e até a popular carqueja, «que dá para fazer chá e um delicioso arroz». A Just Natur promove a divulgação do território castrejo, tanto a nível cultural como natural, mas sempre lembrando a importância do respeito pela natureza e a responsabilidade social.

No coração da vila, o Centro Museológico de Castro Laboreiro, sediado numa antiga fábrica de chocolates, também merece uma visita guiada por Sónia. Adjacente ao edifício está a réplica de uma casa castreja, com telhado de colmo e vários utensílios. A cama, como em tempos idos, não tem pregos. É sustentada por cordas, para ser mais fácil desmontar e levar em viagem na época da transumância. Tradição antiga, e que ainda se pratica nos dias de hoje, já que há famílias que nas estações frias se instalam nas inverneiras, nos vales, e no verão fogem do calor e voltam para as brandas, no alto da serra, onde abundam os pastos para os animais.

No museu, encontra-se também o traje castrejo, «cuja maior particularidade é a capa, originalmente feita de burel», explica Sónia. Sempre vestidas de negro, as mulheres castrejas eram «conhecidas como as viúvas dos vivos», encarregues de todas as lides da casa e do campo no tempo em que os maridos estavam para fora. Hoje, ao passear pela rua, ainda se vê uma ou outra mulher envergar, orgulhosa, o traje, escoltada pelo seu castro-laboreiro que impõe ordem às cachenas. É uma imagem comum neste território raiano, uma região única, com cultura, história e costumes partilhados pelos dois lados da fronteira, e que se deixam descobrir por quem tiver o dom da curiosidade.

Água, vinho e queijo «clássico»

Antes de chegar à bebida engarrafada mais democrática da região – o alvarinho pois claro –, há que mencionar a água mineral gasocarbónica de Melgaço, engarrafada pela primeira vez em 1885 e que está na origem do Parque Termal do Peso, na freguesia de Paderne, agora as reabilitadas Termas de Melgaço. Mantém-se o notável pavilhão da fonte principal – do início do século XX, que conjuga a arquitetura do ferro com elementos decorativos que salpicam de cor os vitrais –, onde ocasionalmente há concertos de música erudita. O edifício onde funcionam as termas foi renovado e vai reabrir em breve, a tempo de aproveitar o fresco e verdejante parque que o rodeia.

(Fotografia de Artur Machado/GI)

Voltando ao alvarinho, a nobre casta branca que tornou o vinho verde da região cartão de visita do concelho, é nas zonas de Melgaço e Monção que atinge o máximo das suas potencialidades, resultando num vinho de sabor macio e encorpado. Para harmonizar com um queijo de cabra, por exemplo. Mas não um qualquer.

Na queijaria Prados de Melgaço, as coisas fazem-se de maneira natural e sustentável, com respeito pelo bem-estar dos animais. É que ao entrar no cabril – visitável com aviso prévio de 24 horas – dá a impressão de se estar numa sala de espetáculos para assistir a um recital. Lá dentro, ouve-se música clássica todo o dia. «Ajuda os animais a relaxar e faz que deem mais leite, o que também se traduz na qualidade do queijo», explica Amadeu, responsável pelo fabrico.

O projeto começou em 2015, quando um jovem casal, Marco Sousa e Verónica Soalheiro, decidiu voltar à terra de origem e mudar de vida. Hoje, a marca produz seis tipos de queijo, mas o que mais se destaca é o de cura longa maturado em pasta de pimentão e vinho (alvarinho, pois). Todos são de fabrico artesanal e podem ser encontrados facilmente na região, em algumas casas especializadas no Porto e em Lisboa ou, de passagem por Melgaço, fazendo uma paragem na loja de fábrica e, quem sabe?, até fazer uma visita às cabras, ao som desta música tranquilizadora.

(Fotografia de Artur Machado/GI)

Mesas serranas

No Miradouro do Castelo, nome mais do que adequado, já que das janelas do restaurante se tem vista desafogada para a montanha que suporta o antigo castelo de Castro Laboreiro, é Maria dos Prazeres quem, há quase 30 anos, comanda a casa, e a cozinha, de onde sai um belo cabrito assado. É cá da terra, mas a vida já a obrigou a ir para fora do país. «Antes não havia aqui nada», conta. «Um dia viemos de férias e diz o meu marido, “Aqui é que estava um bom sítio para um restaurante”.» Pois estava. A dois passos dali, basta atravessar a rua, outra mesa (e outra especialidade) que vale a pena conferir: o restaurante do hotel Miracastro, que conquista os visitantes pela tenra vitela assada.

Algo está a fazer com que o sistema não consiga mostrar a ficha ténica desejada. Pedimos desculpa pelo incómodo.

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