Mafra: Escapadela na natureza digna de um verdadeiro rei

O tricentenário da construção do Basílica e do Palácio de Mafra é o pretexto para agarrar na família e fazer planos entre a história e a natureza. Com tempo para conhecer animais, reis, doces e, claro, o pão.

«Dezassete de novembro deste ano da graça de mil setecentos e dezassete, aí se multiplicaram as pompas e as cerimónias no terreiro, logo às sete da manhã, frio de rachar. (…) Chegou el-rei pelas oito horas e meia, já tomado o chocolate matinal. (…) Foi a pedra principal benzida, a seguir a pedra segunda e a urna de jaspe, que todas três iriam ser enterradas nos alicerces.» Assim conta Saramago, no Memorial do Convento, sobre o dia em que foi lançada a primeira pedra da basílica de Mafra.

Um ambicioso projeto e voto de D. João V, que prometera construir um convento de franciscanos caso D. Maria Ana de Áustria lhe desse um herdeiro. A promessa cumpriu-se num monumento, que é convento, basílica e palácio, e que estava ainda incompleto quando, em 1730, o rei quis a sua sagração. «Tiveram de se colocar panos brancos no lugar do teto», explica a técnica de apoio Isabel Yglesias, pelos corredores do palácio de Mafra, enquanto é montada a exposição Do Tratado À Obra.

Esta, sim, ficou terminada e aberta ao público a 17 de novembro, dia em que se comemoram 300 anos desde o lançamento da pedra fundadora do edifício. É possível descobrir mais sobre a construção do monumento e assistir a um concerto de entrada livre na basílica, uma oportunidade para ver os seis órgãos únicos no mundo a tocarem em conjunto.

Outra forma de comemorar o tricentenário passa por visitar a renovada sala do trono do palácio, onde qualquer um podia ter uma audiência com o rei. A melhor forma de o fazer é juntar um grupo e reservar uma visita guiada. Começa-se na enfermaria do convento, passando pelas salas dos camaristas e das damas e percorre-se a distância de 232 metros do torreão do rei até ao da rainha. Fica-se a conhecer as várias vidas que teve o palácio, de 1717 até 4 de outubro de 1910, data em que D. Manuel II, último rei de Portugal, ali pernoitou antes da ida para o exílio.

A fuga de D. João VI para o Brasil, as histórias das invasões francesas, a ocupação do palácio pelos ingleses e a sala da caça conduzem o passeio pelos corredores até à biblioteca. Trata-se de um dos acervos literários mais importantes do século XVIII. À época, D. João V enviou embaixadores pela Europa fora para recolherem o que de melhor se tinha publicado até então.

São 36 mil obras, em grego, latim, francês e holandês. «Inglês muito pouco», conta a técnica, acrescentando: «Foi nesta biblioteca que D. Miguel e o futuro D. Pedro IV aprenderam a andar de patins, em pequenos.» Só nas raras visitas ao interior da biblioteca que o palácio organiza é possível transpor o cordão vermelho à entrada e pisar o soalho do salão. Nas dezenas de prateleiras estão obras proibidas pelo Index (índice de livros censurados pela Inquisição), e as secções dividem-se entre a religião e o saber científico, com os dicionários, as enciclopédias e os clássicos a ocupar o centro da sala.

A biblioteca do Palácio Nacional de Mafra

A biblioteca do Palácio Nacional de Mafra

O mito das gigantes ratazanas é rapidamente desfeito nesta visita, mas confirma-se a presença de pequenas colónias de morcegos na biblioteca e na casa da fazenda do palácio, onde se guardam ornamentos da basílica. Escondem-se por detrás das prateleiras, no primeiro caso, e alimentam-se dos insetos que comem as páginas dos livros. Colaboradores «à altura» das suas funções.

 

Os animais, os doces e o pão de Mafra

O carro acelera por entre as estradas dos 850 hectares da Tapada de Mafra e, pela vegetação, correm gamos e javalis. Os veados, mais reservados, veem-se ao longe, mas à noite perdem a vergonha e aproximam-se da casa senhorial da tapada. Quem garante é Paula Simões, diretora, que ali que viveu durante os primeiros quatro meses em que assumiu a direção. É também nesta casa senhorial, do tempo do Estado Novo, onde podem dormir os apaixonados pela vida animal. O ideal é que os hóspedes ocupem os nove quartos da casa.

A experiência custa quase 600 euros, mas a garantia é de acordar virado para o Pavilhão de Caça onde o rei D. Carlos se reunia com amigos, antes das caçadas. Estas não aconteceram nos últimos anos e Paula, ela própria caçadora, explica porquê. «Quando cheguei havia um desequilíbrio na densidade das espécies. Neste momento já temos 300 gamos, outros 300 javalis e cerca de 100 veados, mas precisamos um equilíbrio neste ecossistema. Isto é floresta pura, não um jardim zoológico», frisa sobre a tapada, mandada construir por D. João V nos seus últimos anos de vida.

Gamos e javalis estão entre as espécies da Tapada de Mafra

Os passeios pedestres são populares nesta floresta, assim como as cestas de comida para piqueniques que, por 31 euros, garantem o estômago cheio a dois visitantes. As atividades alargam-se a percursos de BTT, demonstrações de falcoaria, tiro com arco e workshops de apicultura. Luís Estrela, da Apisestrela, é o apicultor que recuperou esta faceta da tapada com a reinstalação de colmeias. Produz ali mel, que pode ser comprado na loja da tapada, mas também conduz oficinas onde explica aos mais novos que «as abelhas são mais do que mel e picadas». A organização e disciplina desta sociedade, os primórdios da apicultura em cortiços, os vários tipos de mel e o poder do pólen são tudo temas abordados pelo apicultor nestes ateliês. Já os workshops Experiência Apícola envolvem parte teórica e prática e incluem atividades junto aos apiários da tapada.

Com a boca doce há que conduzir a família até ao centro da vila, Praça da República, onde estão duas pastelarias conhecidas dos mafrenses, a Pólo Norte e a Fradinho. Na primeira leva-se boa variedade de pão para casa, inclusive de Mafra, e na Fradinho encontra-se a queijada tradicional da vila, feita de doce de ovo, amêndoa e feijão. «Nunca houve freiras no convento de Mafra, mas reza a história que os doces conventuais de Alcobaça influenciaram a criação do fradinho e a receita acabou por ser registada há várias décadas pelo antigo proprietário da pastelaria», conta Patrícia Batalha, arquiteta de profissão e dona do restaurante Himitsu, que abriu no centro de Mafra em 2016.

Esta fiel antiga cliente do Aya, formada pelo chef Paulo Morais, encomenda todas as semanas o doce dos fradinhos para rechear uma das três sobremesas do Himitsu inspiradas na doçaria conventual. O doce, espalhado por camadas de massa choux, é a sobremesa principal, mas há que enumerar também o pão-de-ló com lemon curd e os ovos-moles que fazem par com frutos vermelhos. Antecedem-nas bao, maki, tataki, ramen e teppanyaki, algumas das especialidades japonesas assinadas pelo chef Mário Ribeiro, do Nómada, e executadas pelo sushiman Chawa Lama.

O pão-de-ló com lemon curd do Himitsu

 

Ali perto, troca-se o peixe pela carne no Sete Sóis, onde a especialidade é a caça. «Temos veado, javali, coelho, faisão e perdiz e tenho clientes a vir do Algarve só para provar as carnes», explica Pedro Casinhas, formado em engenharia, mas há 13 anos a liderar o restaurante. Começou apenas com alguns pratos de caça no menu, mas hoje este é o principal traço da personalidade do Sete Sóis, com destaque para o javali em vinha de alhos com batata salteada e presunto e o bacalhau da Islândia grelhado, para quem dispensa as facas afiadas.

 

A uns minutos do centro
De barriga cheia, resta encontrar a Quinta dos Machados para uma noite tranquila. A viagem demora 15 minutos de carro a partir do centro da vila até à antiga propriedade da família Machado, que aí produziu vinho até ao século XX. A quinta está neste momento nas mãos dos Almeida, que remodelaram a antiga casa e a converteram ao turismo rural.

No total são 29 quartos e dois apartamentos, entre o antigo celeiro, a residência clássica familiar e a nova ala moderna, onde está também o spa, a banheira de hidromassagem, sauna e banho turco. No verão, é comum ver casamentos junto à piscina exterior ou no bosque da propriedade, que merece ser explorado pelos hóspedes. Existem trilhos para ciclistas, um rebanho de ovelhas e, daqui a uns meses, estará terminado o percurso sensorial pelo bosque e abertas as aulas de ioga.

Os mais inquietos podem dedicar-se à confeção do pão de Mafra num dos workshops da quinta que acontecem no forno a lenha do jardim. Dali tem-se vista para o jardim de inverno e para o restaurante Cantinho dos Sabores, que de manhã é anfitrião dos pequenos-almoços. Pão de Mafra é sempre garantido, mas também compotas, bolos e granola caseira, e os gulosos biscoitos de alfazema e azeite, que são deixados à cabeceira.

É tempo de partir em direção à Quinta do Arneiro, que não só produz os seus produtos, como o faz num modelo biológico. As visitas guiadas custam 3,50 euros e permitem conhecer com os miúdos a propriedade que pertence à família Almeida desde o final dos anos 1960. Ali se produziu pera-rocha numa monocultura de 30 hectares que perdurou até 2007, ano em que Luísa Almeida tomou a decisão de colocar o selo biológico nos hortícolas.

Da terra saem agora alfaces, couve kale e pak choi, abóboras, rúcula, curgetes, ervas aromáticas, tomates e morangos o mais naturais possível, que vão integrar os cabazes semanais da Quinta do Arneiro. Entregam na Grande Lisboa e na margem sul do Tejo até Alcochete com encomendas mínimas de 20 euros. Para além de chegarem ao domicilio, os produtos são também vendidos na mercearia da quinta. Alguns são transformados para dar origem a tomate seco, compotas e molhos, que ocupam as prateleiras ao lado de produtos que vêm do exterior, como frutas e legumes que ali não se plantam, mas também vinhos, cervejas, bolachas, pão e leguminosas, tudo natural.

A Quinta do Arneiro é conhecida pelos seus produtos biológicos. Pode visitá-la por apenas 3,5 euros.

Outra parte da produção do Arneiro é celebrada num convidativo restaurante com mezzanine no andar superior. A cozinha está entregue ao chef João Silva, 33 anos, que passou pelo Vila Vita, pelo São Gabriel e pelo Inspira Santa Marta antes de se encantar pelo biológico desta quinta. À sua disposição estão os produtos sazonais, utilizados nos menus que mudam todas as semanas. Sopa de batata-doce e aipo, salada de kale com maçã e romã, bulgur com feijão fillet e beterraba, e vitela assada com lentilhas e acelgas são exemplos do que se pode provar por aqui.

Antes do regresso a casa, impõe-se paragem no Centro de Recuperação do Lobo Ibérico para desmistificar crenças. As visitas em família acontecem todos os fins de semana e feriados neste centro, que existe desde 1987 com o objetivo de impedir a extinção da subespécie ibérica e acolher lobos que não podem viver na natureza. Alguns recolhidos de cativeiro ilegal, de zoológicos e outros que sobreviveram a armadilhas. Num percurso pedestre de 1,5 quilómetros, guiado por um guia, fica-se a conhecer a sua alimentação e rotina, e a saber que a principal população está espalhada pelo norte e centro de Portugal.

Neste momento, o centro acolhe 13 lobos, divididos por territórios de um hectare e agrupados em alcateias de dois. Mas nem sempre é possível vê-los. «É raro, mas acontece, até porque a vegetação dos cercados permite que se possam esconder, caso não se sintam confortáveis com a presença dos visitantes», explica a guia e bióloga Sara, que vai apresentando a Malcata, o Furco, a Arga e a Faia ao longo do caminho.

Todos os lobos podem ser adotados pelos visitantes individuais, grupos de amigos e famílias, com um certificado para os padrinhos e descontos nas próximas visitas. Não são precisos mais pretextos para regressar à natureza.

 

Algo está a fazer com que o sistema não consiga mostrar a ficha ténica desejada. Pedimos desculpa pelo incómodo.

 

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