Graciosa: passeio pela pequena grande ilha dos Açores

Graciosa: passeio pela pequena grande ilha dos Açores
É a segunda menor ilha do arquipélago açoriano, a menos montanhosa e, provavelmente, a mais desconhecida. O que não a torna desprovida de grandezas – é tudo uma questão de escala. E de geometria.

Um círculo perfeito. Praças de touros há muitas, quase todas elas círculos perfeitos. Esta, contudo, parece mais redonda, esculpiu-a a natureza. Fica na cratera de um pequeno vulcão, sobranceiro a Santa Cruz, capital da segunda ilha mais pequena dos Açores. Escala e geometria: duas perspetivas essenciais para dar a conhecer e a compreender a Graciosa.

Ainda a geometria. E a praça. Não é preciso ser aficionado para apreciar a peculiaridade desta arena, que começou por ser improvisada, com pedras, bidões, tábuas e histórias de touros que fugiram mata adentro. Até porque aqui também já aconteceu cultura, daquela que é consensual. Em meados dos anos 1980, serviu de auditório para concertos de Brigada Victor Jara, Fausto, Madredeus. Alexandre Albuquerque era então um adolescente, e conta que estava na discoteca com amigos quando o presidente da câmara os abordou. «Ele queria fazer um festival para a juventude, e não sabia que bandas contratar. Fomos nós que sugerimos os nomes.» A história é boa porque dá a noção de proximidade, de familiaridade que a Graciosa transmite. A de que toda a gente se conhece, se fala, olha pelos seus. A tal questão de escala.

Do cimo do monte da Senhora da Ajuda, além da praça de touros, e de uma ermida-fortaleza quinhentista, tem-se uma vista ampla sobre parte da ilha, o mar, e a vila lá em baixo. É, porque não?, um belíssimo ponto de partida. Santa Cruz da Graciosa é uma capital pequena, não moram sequer duas mil pessoas na freguesia. O que torna a sua praça central ainda mais admirável. Dá para arriscar um título absoluto: nenhuma outra vila portuguesa terá uma sala de visitas deste tamanho. Saltam à vista dois lagos, agora espelhos de água, antigas zonas de paúl aproveitadas para regar campos e dar água a animais. Água é coisa que não abunda aqui, motivo pelo qual a população sempre teve de contrariar os elementos para perseverar.

A Graciosa é a menos montanhosa das nove ilhas, com o ponto mais alto nos 405 metros, a paisagem dominada por declives suaves e pelos padrões geométricos dos muros de pedra que delimitam os terrenos de cultivo e de pasto. A menor altitude traduz-se em menos chuva, menos nevoeiro, solo mais seco. E um verde que não é tão verde como no resto dos Açores. Mas a agricultura faz-se, sempre se fez desde o povoamento. «Os graciosenses tornaram-se um povo de arquitetos amadores», conta Lizete Albuquerque, professora, guia turística e mulher de Alexandre. «Tiveram de inventar maneiras de captar e distribuir a água», continua. Estes séculos de engenho deram à ilha um património edificado singular do qual, em querendo, se monta um belo roteiro de descoberta. (E Lizete é mulher para conhecê-lo de fio a pavio.) Se só se puder visitar um desses sítios, que seja o Reservatório do Atalho, uma obra gigante, datada de 1866, que ninguém espera encontrar num território tão pequeno. Fica debaixo do solo, a alguns 6 metros de profundidade, e tem capacidade para segurar 1800 metros cúbicos de água. A escala é impressionante.

Talvez por esta escassez de água, o cultivo de cereais logo se afigurou como uma das atividades económicas principais, aqui se colheu trigo e milho, justificando o título de Celeiro dos Açores. Onde há grão, há moleiros, e daí vem outro traço de personalidade da paisagem graciosense: os moinhos, de desenho – supõe-se – flamengo, com cúpula vermelha em forma de cebola. De pé, persistem pouco mais de duas dezenas, nem todos no melhor estado de conservação. Não é fácil manter uma casa destas. João Luís, quando recuperou um destes moinhos para o transformar em turismo de habitação, teve dificuldade em achar quem ainda conseguisse fazer o prodigioso tricotado de carpintaria que uma cúpula destas envolve – e, mesmo sem o restauro do mecanismo, apenas o invólucro, garante ter gasto uma pequena fortuna. Isso não o demoveu.

Há cerca de 20 moinhos como este, que testemunham a abundante produção de cereais, responsável pelo título de celeiro dos Açores dado à ilha.

João Luís tem um dos moinhos mais charmosos da ilha, o Moinho de Pedra, de frente para o mar, na segunda maior povoação, Vila da Praia. É uma das experiências mais genuínas de alojamento que se pode ter por aqui. Tem apenas três apartamentos (T1), construídos sob a eira, mais um outro (T2) que ocupa o corpo do moinho, com charme acrescido, pisos circulares e a cama do quarto principal posta sob a cúpula de madeira. A escolha óbvia para quem quer continuar a apreciar a geometria das coisas.

Seguindo por linhas curvas, daqui ao centro da vila caminha-se cinco minutos, pelo rebordo da baía. Uma inevitabilidade matinal para quem não se tiver aviado de véspera, já que o Moinho de Pedra não tem serviço de pequeno-almoço. Não que daí venha grande mal ao mundo: cinco minutos de caminhada pelo paredão, de olho no porto (gigantesco, se compararmos com o tamanho da vila) e no areal da única praia da ilha, abrem o apetite. Para o dia que começa. E para a refeição mais importante do dia, que no Café & Sabores Félix acabará por incluir coisas doces. Há pastéis de arroz, amélias, rochedos de chocolate, tudo recomendável – desde que se deixe espaço para a rainha da doçaria açoriana. A queijada da Graciosa bem que pode partir de uma mentira – não, não há queijo na receita, apenas farinha, ovos, leite e açúcar –, mas é defeito que se perdoa à primeira dentada. Quem ficar freguês tem duas opções: voltar todos os dias para o pequeno-almoço ou ir direto à fonte e abastecer-se às caixas.

A Fábrica das Queijadas da Graciosa fica por detrás do Moinho de Pedra e tem loja aberta ao público. Nas paredes há fotografias de visitantes ilustres, entre eles Marcelo Rebelo de Sousa, que por aqui andou a cortar massa em 2017. E de uma muito jovem Sara Félix, que desde pequena ajudava na fábrica da mãe, agora sua e do seu irmão Paulo. Enquanto ele trata da papelada, a Sara toca-lhe meter as mãos na massa. E, de vez em quando, provar o produto, à laia de controlo de qualidade. «São só 100 calorias cada uma», afiança.

Na queijaria Teimoso, em Santa Cruz da Graciosa, Sandra Soares faz queijos de vaca com cura de 30, 45 e 90 dias.

Quase porta com porta com o café Félix, que também pertence a Sara e Paulo, fica outra instituição graciosense. Queijadas, também as há, afinal o negócio principal da família Bettencourt é a panificação e o fabrico de bolos. Mas aqui vem-se, sobretudo, de olhos na substância. Faça-se o exercício de perguntar na rua, a qualquer pessoa, onde se come bem na Graciosa. A resposta pouco há de variar: no JJ. Ou Zé João, para quem prefere o nome original, de quando José João Bettencourt abriu a casa, há 18 anos. Hoje está entregue ao seu filho Filipe, apoiado pela irmã Débora na sala. Na cozinha, estão presentes os pratos que se espera, mas convém ligar com um par de horas de antecedência (de véspera, se for temporada baixa), a conferir que há aquilo que se procura – seja o marisco das boas águas graciosenses, pratos caseiros como a alcatra ou o peixe, aqui tratado por grelha competente. Enquanto se espera, um cortejo local de boas-vindas: pão de fabrico próprio, linguiça, mel e queijo. E, caso o stock entretanto não termine, o vinho Pedras Brancas, que é, no capítulo do gosto, uma das melhores recordações que se pode levar da Graciosa.

Sim, a Graciosa também produz vinho. Pouco é certo. O clima atlântico, o solo vulcânico e o cultivo em currais geométricos de pedra não permitem entrar no campeonato da quantidade. Por ano, fazem-se ali três mil garrafas, número que a prazo pode chegar às 12, 15 mil. Ir além disso não interessa, admite João Picanço, presidente da Adega e Cooperativa Agrícola e raro espécime «duplamente graciosense», filho de mãe e ilha com o mesmo nome. A criação de valor é a prioridade, daí que se antes se vendia a garrafa a 5 euros, hoje o valor anda nos 10, «e ainda vamos chegar aos 15 euros», ambiciona João. Não é um vinho barato, nem podia ser. A raridade tem dessas coisas, mas não é só por aí. O Pedras Brancas sabe a algo de novo, difícil de arrumar em comparações imediatas. É um branco feito maioritariamente das castas verdelho e arinto dos Açores, aromático, elegante, gastronómico. Um vinho redondo, se quisermos ser geométricos.

Voltemos à geometria, e à escala. E à cratera de um vulcão, esta de dimensões mais imponentes: quatro quilómetros de perímetro, 1,6 de diâmetro e uma cumeada que atinge os 405 metros de altitude. Nesta não há touradas – quem ali largasse um touro rapidamente o perderia de vista, pela floresta de acácias e criptomérias que toma o lugar da paisagem de pomares e pastos que estava do outro lado do túnel de acesso. Entrar aqui é como mudar de ilha. Mas não é isso que mais impressiona. Pela estrada de paralelos que atravessa o bosque, encontra-se um edifício de linhas elegantes, lançado da encosta, com assinatura do arquiteto Nuno Ribeiro Lopes.

Daí, toma-se uma escadaria de madeira, depois de pedra, 380 degraus terra adentro, até à Furna do Enxofre. Um monumento natural que o príncipe Alberto I do Mónaco, amante da espeleologia e um dos primeiros a explorá-la, descreveu como «milagre único da natureza». Não é exagero, tanto que esta gruta foi considerada para candidatura a Património da Humanidade e faz agora parte de um projeto mais amplo, de classificação da Dorsal Mesoatlântica pela UNESCO. Resta explicar o porquê: debaixo da ilha estende-se uma abóboda de basalto de 5 metros de altura por 150 de diâmetro (a maior da Europa, segundo se diz), fenómeno originado há 12 mil anos por uma bolha de gás sob lava líquida, entretanto solidificada. Daí a perfeição da sua forma. E a nitidez acústica que ela cria. A natureza, caótica por definição, também tem destes ímpetos de refinamento. Geometria pura e escala, uma vez mais. São elas que dão grandeza à pequena Graciosa.

Lázaro Silva, presidente da Associação de Pescadores Graciosense, a segurar um congro.

Algas e peixe seco

Quando Lázaro Silva era miúdo, a seca do peixe fazia parte da faina, no porto de Vila da Praia. Algures nos anos 1960, a tradição morreu, mas este pescador feito homem de negócios decidiu trazê-la de volta há cinco anos. A Associação de Pescadores Graciosense, da qual é presidente, investiu em câmaras de secagem, e desde então compra as espécies de menor valor comercial (veja, carapau, bicuda, cavala, congro) para fazer uma conserva semelhante ao bacalhau, cuja principal finalidade é a exportação. Menor desperdício, recuperação da tradição, melhor remuneração dos pescadores: por ano, são secas 4 a 5 toneladas de peixe, a que se somam 700 toneladas de algas, colhidas em todo o arquipélago, para venda às industrias farmacêutica e cosmética.

 

Um stopover na Terceira

A inexistência de voos diretos do continente para a Graciosa não tem de ser um problema. Mais do que uma inevitabilidade, a escala na Terceira é uma oportunidade para descobrir a ilha, ainda que de forma superficial.

1 Praia da Vitória
A segunda cidade da Terceira fica a 10 minutos de táxi do aeroporto (cerca de 6 euros por trajeto; à ida, convém guardar o contacto, para simplificar o transporte de regresso). Além da praia que lhe dá nome, a terra-natal de Vitorino Nemésio tem um pequeno centro histórico que, embora não tenha a monumentalidade de Angra do Heroísmo, vale um passeio. É particularmente fotogénico o largo da Igreja do Senhor Santo Cristo das Misericórdias.

2 Vistas
Do centro de Praia da Vitória, em 15 minutos de subida se alcança o topo do Miradouro do Facho, para uma panorâmica geral da cidade. Caso se vá com tempo (e o tempo estiver limpo, sem nevoeiro), no caminho de regresso ao aeroporto faça-se um desvio pelo Miradouro da Serra do Cume, a melhor vista geral da ilha.

3 Comer
Paredes rústicas de pedra, cozinha de aconchego e um chefe de sala dado aos malabarismos e aos trocadilhos. Se é para repor energias, fixe-se este nome: Casa de Pasto Eliseu. (E este também, Bela Vista, já que a casa responde por ambos.) No prato, há codornizes fritas, alcatra, linguiça, iscas, polvo guisado. Fica em Vale Farto, junto à Praia da Vitória (GPS: 38.7306, -27.0754; tel.: 295513424) e encerra à quarta. Preço médio: 12 euros.
Se a escala só der tempo para a gulodice, basta ficar pelo aeroporto, e procurar o balcão da Make Me Nuts, especializada em donuts, bons donuts, à boa maneira americana – ou não estivesse a Base das Lajes ali ao lado.

4 Ficar
Em escalas mais longas, vale a pena procurar a Quinta do Martelo. Não fica logo ali ao lado, mas em coisa de 30 minutos lá se chega de táxi. E dá uma experiência aprofundada sobre as raízes da Terceira, as tradições à mesa, a vida agrícola. Quarto duplo desde 80 euros por noite (quintadomartelo.net).

 

Algo está a fazer com que o sistema não consiga mostrar a ficha ténica desejada. Pedimos desculpa pelo incómodo.

 

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