Arribas do Douro: Um paraíso ainda desconhecido por muitos

No troço internacional transmontano, entre Miranda do Douro e Zamora, fica um pedaço de terra e rio longe da azáfama da civilização. O Parque Natural do Douro Internacional, também conhecido por Arribas do Douro, é uma deslumbrante paisagem montanhosa e um verdadeiro museu ao ar livre do património natural da região.

O dia está cinzento, cai uma chuva morrinhenta e as ruas estão vazias. As placas anunciam a chegada a Miranda do Douro, em mirandês, Miranda de l Douro, e são um lembrete imediato da hibridez linguística e cultural da cidade que faz fronteira com Zamora, Espanha. Aqui, o telemóvel confunde-se e vai alternando entre hora portuguesa e hora espanhola, mas quem procura um encontro com a natureza não vem equivocado. Miranda, «cidade-museu» de Trás-os-Montes, sempre manteve o passado bem perto do coração. Dos pauliteiros de Miranda ao burel das capas de honra, passando pela língua, a identidade da região tem saído praticamente ilesa face à passagem do tempo.

Igualmente bem preservada, mas ainda desconhecida por muitos, é a área verde protegida que envolve a cidade, um dos pontos abrangidos pelo território do Parque Natural do Douro Internacional, ou Arribas do Douro, do lado espanhol, correspondentes ao Parque Natural de Castela e Leão. São filas de íngremes rochedos de uma beleza assombrosa, entrecortados pelo Douro serpeante que parte a Península Ibérica em dois, que servem de refúgio a uma grande comunidade de aves como águias, abutres e cegonhas e que, pela primavera, se revestem de cores com a floração de espécies como a giesta, o rosmaninho e a urze.

(Fotografia: Rui Manuel Ferreira/GI)

Há vários pontos de interesse no concelho para apreciar o encanto do parque, mas é preciso descer até ao cais fluvial de Miranda do Douro para encontrar a sede portuguesa da Estação Biológica Internacional Douro, entidade para o estudo e preservação da biodiversidade que resulta da cooperação luso-espanhola. É este o ponto de partida para o cruzeiro ambiental no navio-aula que, ao longo de uma viagem de hora e meia, mergulha nas profundezas das arribas. O barco dispõe de 120 confortáveis lugares, cobertura panorâmica envidraçada e dois terraços exteriores. À medida que se avança rio fora, ficam para trás os carros, as casas, as estradas, o vaivém da civilização e da rotina. Resta o som da água a ondular com os motores, o ar puro que regenera os pulmões e o vislumbre das aves que fazem ninho nas escarpas.

Passear com um pastor

«É preciso ter sorte para apanhar as espécies no seu habitat natural e poder observá-las», diz Andreia Jorge, convidando o público a fechar os olhos, ao mesmo tempo que é emitido um ruído através de um microfone no convés para chamar as aves. Minutos depois, é devolvida ao barco «uma sinfonia natural que muda todos os dias», salienta a guia. Pelo caminho, observa-se, ainda, a Poça das Lontras, onde estas aproveitam as águas que correm pela ladeira para se refrescar e alimentar. O ponto alto do recorrido é o desembarque num pequeno socalco só acessível por barco. No regresso, há uma prova de vinho do porto à espera. Para terminar a visita, vale a pena espreitar a Douro Valley Shop, loja que vende mel, queijos, vinhos e azeites do vale do Douro.

De volta ao centro da cidade, recarregam-se energias à mesa do Miradouro, um restaurante amplo e acolhedor com serviço familiar. A regionalidade é o chamariz da casa, que tira partido da simplicidade da carta para bem servir. As entradas vão dos calamares à romana aos cogumelos salteados. Nos pratos principais, sobressaem as várias opções de bacalhau, nomeadamente o Bacalhau à Miradouro, uma posta generosa banhada em molho bechamel e servida com batata frita. Na carne, a famosa posta à mirandesa, aqui guarnecida com batata a murro e legumes. O espaço tem ainda uma das mais cobiçadas vistas da cidade, que dá simultaneamente para as arribas e, ao longe, para a Igreja de Miranda do Douro, o maior templo religioso de Trás-os-Montes.

(Fotografia: Rui Manuel Ferreira/GI)

A riqueza do património natural e cultural da área estende-se a várias aldeias do planalto mirandês. Em Freixiosa, de binóculos em punho e com muita paciência, também se podem observar os pássaros que se escondem entre as sombras do alto das árvores. Mas o verdadeiro cartão-de-visita da terra é a pastorícia de percurso, uma das mais caraterísticas atividades do nordeste transmontano. Albino S. Pedro, 58 anos, pastor desde os 11, é um dos últimos na profissão que ajudou a moldar a paisagem e economia da zona. Não admira, pois, que seja ele o guia do passeio matinal organizado pela Palombar – Associação de Conservação da Natureza e do Património Rural.

De cajado na mão, Albino conduz o gado encosta abaixo, num caminho de terra batida ladeado por densa vegetação que é um verdadeiro banquete para os animais. Enquanto as cabras sobem aos troncos das árvores à procura da folhagem mais saborosa, o pastor recorda que esta é a sua rotina «desde catraio» e que, em tempos, participou «num filme que foi feito sobre a gente daqui». Refere-se a Trás-os-Montes, documentário ficcionado de António Reis e Margarida Cordeiro, de 1976, que retratava personagens típicas da Terra Fria. Enquanto responde às perguntas dos mais curiosos com um sorriso humilde, leva o grupo a um dos miradouros da aldeia. Ali, mais uma vez, a imensidão da paisagem é inacreditável, o céu espelhado no rio entre os majestosos rochedos.

Poesia mirandesa com vista

A norte de Freixiosa, para lá do centro de Miranda, está a Aldeia Nova. É da Igreja Matriz, edifício quinhentista restaurado em 2015, que arranca o percurso pedestre preparado por Domingos Raposo, professor de História e de Língua e Cultura Mirandesa. Começa por saudar os presentes com «Olá, boa tarde», seguido do «Oulá, buonas tardes» que se pode ouvir na zona, mescla linguística que marca todo o passeio. À medida que se sai da aldeia para descer em direção ao rio, o sol vai alto e o caminho sobe e desce entre os penedos, mas é um verdadeiro privilégio pisar os campos floridos que adornam as arribas.

A primeira paragem do percurso é o miradouro de Penha d’Águia ou Penha Laila, uma formação rochosa que é uma autêntica varanda para o mais estreito ponto da fronteira no nordeste transmontano. São apenas 52 metros de rio que separam Portugal e Espanha, proximidade evidenciada quando, a certa altura, se vêm ao longe pessoas do tamanho de formigas a apreciar a paisagem do lado espanhol. O grande destaque do percurso é, contudo, o miradouro de São João das Arribas. Situado junto à capela medieval inserida no castro da Aldeia Nova, povoação datada da Idade do Ferro, apresenta uma deslumbrante vista panorâmica das Arribas do Douro, tornada ainda mais especial com a leitura de poesia em mirandês a acompanhar.

(Fotografia: Rui Manuel Ferreira/GI)

De volta à aldeia, o ponto de chegada é a Puial de l Douro, casa de turismo rural e sede dos passeios e atividades organizados por Domingos Raposo, proprietário. À entrada, repara-se de imediato nos confortáveis sofás, cadeiras e redes do terraço, ideais para desfrutar dos dias de sol e da quietude do campo. No interior, as paredes de granito e os móveis à antiga dão-lhe um ar simultaneamente rústico e senhorial, e a decoração casa o tradicional e o moderno de forma harmoniosa. Sobressai o detalhe do forno de pão antigo que enquadra uma das escadarias. Há nove suítes, todas com decoração diferente, mas igualmente espaçosas e iluminadas. O preço arranca nos 70€, que incluem um pequeno-almoço onde brilham produtos caseiros e regionais.

Se a prioridade for o conforto dentro da cidade, a escolha pode passar pelo hotel e restaurante O Mirandês. Fica a dez minutos a pé do centro histórico de Miranda e tem uma decoração simples que percorre todo o edifício. Os quartos são duplos ou suítes com camas individuais e primam pela comodidade. Caraterística, aliás, realçada pela integração do restaurante que serve almoços e jantares no mesmo edifício. O espaço é conhecido pela suculenta posta à mirandesa, servida com batata frita, arroz e pimento vermelho, e pelo estaladiço bacalhau na brasa, especialmente procurado pelos espanhóis que vivem perto da fronteira. Nas sobremesas, destacam-se as especialidades da casa – torta de laranja e amêndoa. Os clientes podem usufruir ainda de vinhos regionais servidos em jarro.

A «aldeia dos pombais»

Na busca pela natureza do território, há dois desvios importantes a fazer. O primeiro é Atenor, aldeia onde se localiza o Centro de Valorização do Burro de Miranda, sede da Associação para o Estudo e Proteção do Gado Asinino. A preservação da espécie é a prioridade, sendo organizadas visitas guiadas ao centro, passeios com burros e sessões de terapia com os animais.

A visita desta manhã está a cargo de Carolina Martin e começa logo à entrada, onde as crias recentes se passeiam. «Os nomes dos burros são dados de acordo com uma letra por ano. Este ano é O», explica, convidando o público a batizar um dos burrinhos. Mas eles são os primeiros a conquistar quem os visita, demorando-se nos afagos recebidos. Ao lado, está a «maternidade dos burros», onde são mantidas as crias e as mães e, a um passo dali, dois estábulos que opõem «os burros que estão de dieta e os que precisam de engordar». O macho não castrado de serviço parece-se com um burro meiguinho que rejubila com a atenção dos visitantes, mas chama-se Cordeiro.

(Fotografia: Rui Manuel Ferreira/GI)

Logo se ruma à aldeia de Uva, esta já pertencente ao concelho de Vimioso e também conhecida como «a aldeia dos pombais». A paisagem faz jus ao nome, pois o verde do cenário é pontilhado pelos 45 pombais que se espalham pelas encostas. Américo Guedes, responsável da Palombar, cuja sede é em Uva, explica que «estas construções são típicas da paisagem transmontana», podendo ser de três tipos, «redonda, redonda com telhado cónico ou em forma de ferradura». Além de constituírem um lugar de refúgio e alimentação de pombos, as estruturas de pedra são usadas por animais como os estorninhos e as corujas.

O recorrido termina como começou. No seio das Arribas do Douro, desta feita no cais da Bemposta, em Mogadouro. É daqui que parte o cruzeiro da Naturisnor, um passeio de cerca de duas horas feito ao largo do Douro num barco a céu aberto. Esta caraterística permite, desde logo, um contacto mais próximo e direto com a fauna e flora que habitam as escarpas. Os adeptos de observação de aves podem mover-se livremente pelo barco para identificar espécies como o grifo, o abutre-do-egipto ou a águia-real. Mas esta é uma paisagem que merece ser apreciada a olho nu por todos os amantes da natureza. Aqui e agora, o vasto silêncio apenas interrompido pelo canto das aves e a rara beleza dos penhascos que moldam o rio dão uma sensação de completude para lá da realidade. E, depois de descobertos os pontos secretos deste mapa do tesouro natural, o difícil é voltar.

Algo está a fazer com que o sistema não consiga mostrar a ficha ténica desejada. Pedimos desculpa pelo incómodo.

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