Se as peneiras fossem música na cidade do Porto

(Fotografia de André Gouveia/GI)
A canção de Natal do Porto devia ser o 'Adeste Fideles' cantado por um coro das vendedoras do Bolhão, dos músicos e cantores da cidade. Não o 'Amazing Grace' interpretado com uma voz de mel.

Lembro-me muitas vezes das palavras do senhor Mota, o taxista do 88, portuense com elevado grau de pureza, que sabia dizer tão bem aquilo que era preciso. Ele contava que tivera como colega de escola uma mulher muito influente na política portuguesa e que ela sempre fora vaidosa. Inteligente, vincava ele, estudiosa. Mas vaidosa:«Eu até lhe dizia: ó cachopa, se as peneiras fossem música, tu eras melhor que o Orfeão da Madalena». Ocorreu-me as peneiras serem música quando vi o vídeo sobre a programação de Natal do Porto deste ano – em que viajamos pela Batalha, Boavista, Clérigos e Aliados com pistas de gelos, concertos, animação, neóns e pessoas felizes ao som do muito cinematográfico Amazing Grace, cantado por uma voz de mel masculina.

Se as peneiras fossem música, o Porto seria um hino escrito por um inglês, traficante de escravos que, depois de sobreviver a um naufrágio quando regressava da costa de África com a sua carga humana, se arrependeu e se tornou cristão devoto, pastor e pregador. “Graça maravilhosa/quão doce é o som/que salvou um desgraçado como eu/eu estive perdido, mas agora encontrei-me/ eu estive cego, mas agora eu vejo”. As peneiras do Porto em música são isto, a redenção do traficante John Newton, que se inspirou na toada regular dos escravos no navio – que a faziam por estarem impedidos de falar e de cantar durante a viagem.

E então eu pergunto: mas não havia uma canção melhor para exprimir as peneiras do Porto? Era mesmo preciso ir buscar um clássico que se celebrizou na América (onde, por sinal, foi cantado por grandes vozes) e que nem é uma canção de Natal? Mais valia que as peneiras fossem o melódico papapapapapa com sabor a Jingle Bells do vídeo do ano passado. Fiquei desiludida com este Amazing Grace todo de mel, que não fazia bater muito a letra com a careta – o Porto, apesar de toda a sua monumentalidade, não tem uma cinematografia elegante. Tem uma cinematografia abrupta, às vezes rude, às vezes arrebatadora. Tem uma daquelas caras de traços fortes que, sem ser delicada, tantas vezes nos assoma subitamente linda, com uma luz que lhe chega de dentro.

O Porto, a ser uma canção de Natal, seria por exemplo o Adeste Fideles cantado por um coro das vendedoras do Bolhão. Com uma orquestra dos artistas de rua e dos músicos das orquestras da cidade. Com as cantadeiras dos ranchos folclóricos. Com os seus cantores e músicos de jazz, os seus fadistas. E na ausência de senhor Mota, que nos deixou de forma trágica, com um solo do taxista da Ribeira que, apesar de revoltado pelo café andar a preços de turista, trabalha sempre a cantar. O Porto trabalha sempre a cantar, sofre sempre a cantar. A pronúncia do Porto é uma forma de cantar. E é por isso que se devia cantar as peneiras portuense de uma maneira menos artificial e para inglês ver. Para inglês ver, já basta termos que ler “Portuguese Handcrafted Food” à porta dos restaurantes do centro histórico.

 

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