Sardoal: um Ribatejo improvável e quase esquecido

Em tempos poiso de escritores, poetas e reis, a vila do Médio Tejo é hoje um recanto semi-esquecido a norte de Abrantes. Porém, é tudo menos parente pobre da cidade vizinha: a pé ou de carro, há muito para desbravar nesta terra fiel à sua tradição.

«Serra: Donde sois? / Jorge: Do Sardoal / e (ou bebê-la, ou vertê-la!) / vimos cá desafiar / a toda a serra da Estrela / a cantar e a bailar.» Retirado da Tragicomédia Pastoril da Serra da Estrela de Gil Vicente (1527), o excerto é apenas um dos vários exemplos que levam alguns sardoalenses a defender que o escritor nasceu na sua terra.

Está provado que este acompanhou a corte de D. Manuel I e as referências à terra são constantes na sua obra. A pitoresca vila do Ribatejo também foi poiso de Bocage que por ali se apaixonou – a sua amada foi Maria Margarida, filha do cirurgião da terra. Reza a lenda que o poeta tinha por hábito esconder-se no sótão da casa do sogro para fugir à polícia.

Lendas ou não, a verdade é que ambos gozam de apreço especial – e o centro cultural leva o nome de Gil Vicente – e há quem tenha os seus retratos pendurados na parede. Na sala do restaurante Quatro Talhas, outrora lagar de azeite, estão lá todos para a posteridade: o dramaturgo, o poeta e o rei, partilhando a parede com Joaquim Ramos, proprietário e cozinheiro desta casa aberta em 2004.

A filha, Indira, vai contando a história da família enquanto o pai, na cozinha, prepara uma carne que na verdade começou a ser trabalhada três dias antes. Com influência açoriana, este prato de vaca com molho de bruxa é uma herança do tempo dos templários. O molho escuro incita à colherada até ao fundo do pote de barro. A carne vale cada pedaço, de tenra que é. Mas quem por ali passa não deve sair sem provar o bacalhau confitado acompanhado de migas de couve, dignas herdeiras da cozinha fervida, nascida do aproveitamento de sobras.

O restaurante fica na Praça da República, mesmo ao lado da câmara, no centro da parte mais antiga da vila. Impõe-se um passeio pelas ruas estreitas, onde as casas se alinham com a mesma faixa amarela, e ainda persiste o hábito de os vizinhos se sentarem à porta a conversar. «Estão à procura de alguma coisa?», perguntam. Aproveitando a deixa, «onde é a Cadeia Velha?». É logo «ali em baixo», afinal. Construída no século XVI, foi, em 1989, transformada no Centro de Artes e no ateliê de pintura do aguarelista Álvaro Mendes.

Dali há que subir, retribuindo cumprimentos a quem se vai cruzando no caminho, em direção ao outro lado da vila, para a loja Cá da Terra. Fica no Centro Cultural Gil Vicente e, além de promover atividades como workshops de costura, reúne produtos de Sardoal, Constância e Abrantes: leques de cana, talegos (bolsas de retalhos), queijos e doces regionais, vinhos.

Quem tiver gosto por ir à origem das coisas pode sempre fazer o desvio – a pé será coisa de 10 minutos a andar – até à Quinta do Côro, cujas vinhas se estendem até ao casario.

Isabel Vieira Graça, nora da matriarca Florinda Graça, recebe os visitantes com energia contagiante. Das casas de família que ficaram vazias após construírem a casa principal, fizeram um turismo rural com vista privilegiada sobre as vinhas, com ginásio, spa e piscina. Mas é pelos doces regionais e o vinho – disponíveis, uns e outros, na Cá da Terra – que a quinta é imediatamente reconhecida nos arredores. Tudo começou com uma brincadeira de Florinda, corria o ano de 1983.

Doceira de mão cheia começou a fazer as compotas e geleias em maior quantidade. O negócio expandiu, e atualmente produzem para quase todas as grandes superfícies comerciais e várias lojas gourmet. Entre a marmelada, as compotas, as passas de figo ou os figos confitados, o difícil é escolher. Em 2002, um desejo antigo tornou-se realidade. O negócio dos doces ia bem, mas havia que aproveitar as vinhas que rodeiam a propriedade. Começaram a produzir vinho no antigo lagar de azeite, transformado em adega. Os primeiros anos são complicados, há afinações para fazer, e impõe-se construir a marca.

Volvidos 15 anos, o vinho Quinta do Côro está presente em praticamente todos os restaurantes da região e já é exportado. Para o crescimento, muito ajudou a mentoria de António Ventura, que a Revista de Vinhos apontou como enólogo do ano em 2016. Entre um copo e um doce no pão caseiro, o tempo parece abrandar para dar espaço ao prazer da gula.

A contemplação não se esgota nas vinhas do Côro. Em torno do Sardoal, há percursos pedestres a pedir tempo e atenção para os detalhes sublimes da natureza. Na Rota do Pão ao Vinho, caminha-se até à Lapa, onde fica a capela da Nossa Senhora da Lapa. Para além de local de romaria, é um dos lugares mais visitados pelos sardoalenses, pelas águas límpidas do rio que convidam ao mergulho, durante o verão. Há um parque de merendas e um extenso campo verde onde se faz campismo selvagem. Dali parte-se para os Moinhos de Entrevinhas.

Quatro moinhos, um deles em ruína, constituem o núcleo mais importante da região. Até 1956, ainda funcionavam em pleno e, para quem quiser visitar o interior e perceber como se fazia o pão, é possível agendar com a câmara uma visita guiada.

A escassos 20 minutos do Sardoal, encontra-se a Aldeia do Mato, lugarejo com não mais de 50 pessoas. Se no verão é poiso de muita gente da terra, que vem aproveitar a albufeira de Castelo de Bode, no inverno o fluxo é bem menor. Jorge Esteves prefere assim. Proprietário do turismo rural Quinta da Eira Velha, remodelou a casa de família e transformou-a num refúgio com vista soberba para a barragem. Em julho de 2015, com quatro quartos disponíveis, abriu as portas da casa onde também vive.

A sala de estar com teto alto, paredes de madeira e decoração minimalista, é um convite ao descanso. Na decoração de toda a casa reina o branco, entre as colchas das camas, os espelhos comprados na Feira da Ladra e restaurados, os objetos em cima das cómodas. Nada é exagerado, valoriza-se sobretudo o conforto. O único som que se impõe são as badaladas do sino da igreja, ali tão perto, a substituir o relógio. «O que queríamos era que os nossos hóspedes se sentissem em casa, não tanto num hotel», defende Jorge.

É também por isso que faz questão de conviver com quem chega, sugerir passeios, restaurantes, locais a visitar. Relações que se estreitam com um copo de vinho da Quinta do Côro, amiga da casa. É bom estar entre amigos.

 

Algo está a fazer com que o sistema não consiga mostrar a ficha ténica desejada. Pedimos desculpa pelo incómodo.

 

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