Ponta Delgada: o paraíso açoriano para se visitar sem pressas

A capital açoriana nunca se estranha e só se entranha, porque tudo nela é bom de absorver. O seu ritmo desapressado, a gentileza dos seus nativos, a beleza esmagadora das paisagens, a ternura dos seus lugares humanos... e os sabores incríveis da sua comida. Vá com alguns planos, mas não demasiados. Porque em São Miguel só pode contar com ajuda para desacelerar e apreciar aquele paraíso delicado como ele merece.

É provável que o primeiro – e mais revigorante – remédio da ilha de São Miguel seja tomado à saída do avião, no aeroporto de Ponta Delgada, ao contacto com o seu ar fresco e herbal, limpo. Levíssimo, que apetece inspirar vigorosamente sem parar. A segunda terapia açoriana há-de impôr-se logo a seguir – esta não é uma terra onde se corra, por isso é escusado querer galgá-la com um ritmo de pacote turístico. Nada, nem ninguém, vai ajudar um continental citadino a cumprir uma agenda sôfrega. Nem os micaelenses que gostam de conversar, nem sequer aqueles que, tendo aberto negócios que prosperam com o turismo, podiam muito bem fazê-lo.

Falamos, por exemplo, de Fernando Neves, que abriu um hotel – o Colégio – na sua antiga escola, criou a confeitaria Colmeia e ainda o restaurante La Cantina, nas Portas do Mar. Neste lugar onde se celebra «o produto local em diferentes culturas gastronómicas», serve-se sushi, pratos tradicionais açorianos ou outros nele inspirados, com alguma fusão, e ainda pizas. Ao domingo, é de não perder a barriga de atum, ou uma invenção da casa, o cremoso de lapas, que deu um toque de risotto ao tradicional arroz daquele marisco. Fernando fez questão de mobilar o La Cantina com mesas corridas e, sobre elas, traves de madeira a evocar árvores – uma espécie de representação minimal de um parque de piqueniques. «Queria que as pessoas partilhassem os pratos, criar convívio e dar uma ideia de comunidade».

E há sempre mais qualquer coisa a prolongar a refeição no La Cantina, como um pratinho com frescas trufas de ananás, cujo sabor há-de perdurar.

Dali para o centro da cidade, podemos ser iludidos pelo jeito veloz de Ricardo Santos, e não é só isso que ilude neste chef que abriu um dos restaurantes mais em voga em Ponta Delgada, o Boca de Sena, junto à praça do Teatro Micaelense. Somos enganados, desde logo, pelo sotaque micaelense, sendo ele um nativo de Abrantes, que acompanhou a mulher, educadora de infância, para os Açores, já lá vão 16 anos. Passou por várias cozinhas, naquela e noutras ilhas, antes de se lançar em nome próprio, e trabalha sozinho, na cozinha e na sala. Há quem vá ao Boca de Cena só para ver este chef franzino, de dizeres castiços e jeito de Speedy Gonzalez em ação. Mas quase todos os que querem experimentar a carta onde há pratos como atum braseado ao mel, polvo crocante ou peito de faisão em molho de alecrim precisam de reservar mesa e não adianta fazer pressão. Ricardo só senta trinta pessoas cada noite e serve apenas uma vez. «Isto não é um restaurante para comer depressa», sublinha.

Por eles e por outros, dos quais já falaremos, mas também por razões de pura geografia é escusado, em São Miguel, querer fazer Roma e Pavia num dia. A dimensão da ilha cabe num fim de semana prolongado e, sendo assim, mais vale entrar logo no espírito dos gentis e tranquilos micaeleneses que costumam dizer, a quem os arrelia, «deslarga-me da mão». É de aplicar ao nosso próprio stress, mal ali se chega. É, então, boa ideia alugar um carro para percorrer as pequenas distâncias que separam Ponta Delgada das Furnas, da lagoa das Sete Cidades, da Ribeira Grande e outros pontos de interesse. Entre eles a adorável plantação de Ananases A. Arruda, na Fajã de Baixo, nos arredores da cidade.

Ou seguir uma recomendação local e esticar-se até à saída da cidade, para almoçar na conhecida tasca do Mané Cigano, afamada pelos peixes fritos e pelos petiscos preparados pelo pai Mané e pelo filho Hélder. Poder ir andando e parando é a melhor forma de percorrer esse paraíso delicado que é São Miguel, com os seus relevos e paisagens, miradouros com vistas de postal, lugares com alma comunitária que nos enternecem e, claro, as suas omnipresentes vaquinhas. Convém é ir preparado para esbarrar em paredes de nevoeiro no lugar das vistas, e conformar-se: afinal, estamos na terra onde todas as estações do ano se podem viver no mesmo dia.

Já para conhecer a cidade de Ponta Delgada propriamente dita, o melhor é ir a pé pela esquadria de ruas estreitas que se espalha em encostas até ao mar. Há muitos pormenores onde o olhar se pode deter, com prazer, surpresa e essa mistura dos dois que torna um recanto memorável. Esta é, sem dúvida, uma cidade para olhar para cima, para baixo e para os lados. E que emana um permanente aroma a fruta, a mar, com um ligeiro e doce travo fumado. No chão, encontra-se a riqueza decorativa dos motivos criados com calcário branco e basalto, a pedra vulcânica das ilhas. Ela também está na ornamentação das fachadas, que têm um certo ar colonial, a chamar-nos aos trópicos.

A prender-nos a atenção, temos ainda as muitas pinturas ou obras de arte a surgir um pouco por todo o lado, nas paredes e muros da cidade, mercê do seu festival de arte e intervenção urbana, o Walk&Talk, criado em 2011.

E para quem vai de começar recomenda-se sempre a Matriz, a praça principal da cidade, onde fica a igreja paroquial e os três arcos das Portas da Cidade. Essa praça, mais a sua linda calçada, só ganhou com a decisão de Catarina Ferreira, outra continental (da Benedita, Alcobaça) de ficar a morar na ilha onde começou a sua carreira de professora. «As pessoas dizem-me que já sou micaelense», diz a morena risonha, que, se não ficasse em São Miguel, deixaria já na ilha um rasto considerável da sua presença, desde a abertura do primeiro hostel, à venda de bolas de Berlim na rua, ao restaurante vegetariano Rotas e, mais recentemente, à recuperação de uma loja centenária da cidade. Foi assim que o antigo Louvre Michaelense, mesmo junto à Matriz, ganhou nova vida, como cafetaria, venda de artesanato e mercearia fina.

Em setembro, Catarina abriu mais um espaço, no piso de cima do Louvre. Era uma casa antiga, de altas janelas e tetos estucados, que foi recuperada com máximo respeito e mínima intervenção, juntando-se às paredes brancas alguns móveis rétro, sobretudo mesas de vários lugares. Chama-se, sem mais, no Andar de Cima e, além de albergar eventos de música e petiscos aos finais da tarde – a agenda Lusco Fusco – também serve ao domingo pequenos banquetes de pequeno-almoço em modo buffet, das 09h00 às 13h00 – com os clientes inspirados a partilhar as mesas maiores, e ficar todo o tempo que quiserem.

 

pequeno

 

E se os micaelenses são os principais clientes daquele espaço, ainda não se habituaram a parar na Travessa D’Água, que o coletivo de arquitetos italiano Orizzontale mobilou com mesas e bancos de madeira, durante o último Walk&Talk. «Achei que ajudava as pessoas terem um sítio onde pudessem assar umas sardinhas e estar com os amigos, mas ainda não se apropriaram do sítio», diz o designer Vítor Cunha. Ele abriu com o amigo Mário Roberto, a Miolo, uma galeria, livraria, editora e espaço de aprendizagens artísticas, sobre ilustração, fotografia e impressão, naquela outra banda de Ponta Delgada – já fora do lado do mar, onde se concentra o movimento. Vítor denuncia-se ao falar de sardinhas, porque não se pescam nos Açores, onde o chicharro é rei, mas é a sua alma portuense a falar, apesar dos 25 anos que já leva em Ponta Delgada.

Naquele espaço, antiga oficina de restauro de órgãos de tubos do mestre Dinarte Machado, pode-se comprar arte a preços acessíveis, incluindo peças de alguns artistas que pintaram murais na cidade. Ou ainda tirar uma fotografia à la minuta e saber o que se segue na agenda de O Quarteirão, projeto dinamizado pelos donos da Miolo, no sentido de criar mais vivacidade naquele lado de Ponta Delgada.

Caso se mantenha essa disposição de conhecer mais outra banda da cidade, há que fazer os três quilómetros até à baía da São Roque para conhecer um dos mais interessantes lugares para se comer em Ponta Delgada. Dois chefs, Paulo Mota e Álvaro Lopes, ambos com carreiras de cerca de trinta anos em restaurantes de hotéis, concretizaram ali o seu ideal de cozinha – metade de autor, metade comunitária, inteira para todos. O Taberna Bay serve comida açoriana, ponto final, descrevem os chefs, cuja intenção foi preservar receitas, ingredientes e técnicas que as escolas de cozinha, viradas para a alta gama, não estão empenhadas em manter.

«O nosso produto é de excelência, quase só precisa de sal», dizem. Ali, serve-se polvo, atum e abrótea, batata-doce e conteira, peixes e mariscos, carne regional e o tempero base é a vinha d’alhos com pimenta da terra. E pela casa modesta, com mesas de madeira e toalhas aos quadrados, onde todos os dias há menu de almoço, passam muitas vezes chefs do continente, alguns deles com estrelas Michelin, prosseguindo o projeto de Paulo e Álvaro, que criaram a Tertúlia dos Chefs para gerar uma dinâmica de cumplicidade.

Durante alguns dias, eles albergam uma espécie de residências artísticas para outros cozinheiros, para experimentar receitas – e algumas ficam na carta do Taberna Bay -, trocar ideias, tudo a terminar num jantar a várias mãos, aberto a quem couber na pequena sala. Convém ir, claro está, sem pressa para ainda ter tempo de passear naquela bonita baía de São Roque, e inspirar, mais uma vez, o melhor remédio de São Miguel.

 

Um hotel com jardins japoneses
A fachada discreta deste hotel engana e a sua localização, numa pequena rua a poucos minutos do aeroporto e já inserido nos primeiros quarteirões do centro histórico, não faz adivinhar o que se encontra por detrás. Lá dentro, encontra-se uma serena decoração de inspiração oriental, amplos espaços abertos com muita luz e um enorme jardim japonês a ligar todas as alas que, apesar do grande número de quartos (são 193), promove uma sensação de privacidade e conforto. Com vista para o jardim, há um ginásio, piscina interior e um spa, e no hotel, há o restaurante Jardim.

Azoris Royal Garden Leisure & Conference Hotel. Rua de Lisboa. Tel.: 296307300. Web: azoreshotelroyalgarden.com. Quarto duplo a partir de 80 euros por noite (inclui pequeno-almoço).
Arte Urbana
Há peixes grandes e gigantes, flores, histórias e rostos nas paredes, a saltar-nos à vista nos muros e nas fachadas de Ponta Delgada. A cidade é, desde 2011, uma espécie de Meca da arte e intervenção urbana, no âmbito do festival Walk&Talk, promovido pela associação local Anda&Fala. Ao todo, há setenta pinturas e murais, alguns em lugares inesperados, para ver por toda a cidade, naquele que se tornou um circuito de arte pública, mas o melhor mapa é mesmo deixarmo-nos ir e surpreender por estas «tatuagens» urbanas.

Web: walkandtalkazores.org
Cocktails de Raíz
Se há clichés que vêm por bem – como o de dois lisboetas trocarem a inquietação da capital pelo sossego de Ponta Delgada – este é um deles. Gabriel Pereira e Gonçalo Veloso abriram há pouco o Raíz, bar e sala de concertos, na Matriz, e é bem agradável o espaço amplo, com grandes janelas para a rua, a parecer uma velha usina que foi limpa e recheada de sofás de couro. O espaço deixado vazio é para se dançar, já que todas as semanas há música ao vivo. Uma parede totalmente revestida a plantas honra a paisagem açoriana e algo mais a honra: a carta de mais de 25 cocktails e a outra que está na cabeça do mixologista António Granado, que trabalha com eles nestes primeiros meses e parece saber de cor toda a botânica açoriana. Peça-lhe um cocktail com sabor a Açores. Ou dois.

Raíz. Rua António José D”Almeida, 6. Tel.: 966919410. Quarta e quinta das 22h00 às 03h00, sexta e sábado até às 06h00.
Evasões recomenda

COMER

Boca de Cena
Largo de São João, 4. Tel.: 296283262. Das 19h30 às 22h00. Encerra ao domingo e feriados. Preço médio: 30 euros

La Cantina
Portas do Mar, loja 2 (Marina). Tel.: 296098693. Das 12h00 às 15h00 e das 18h00 às 23h00. Não encerra. Preço médio: 18 euros

Cervejaria Sardinha (Mané Cigano)
Rua Engenheiro José Cordeiro, 1/3. Tel.: 296285765. Das 08h30 às 22h00. Encerra ao domingo. Preço médio: 8 euros.

Taberna Bay
Rua Belém de Baixo, 1, Rosto de Cão (São Roque). Tel.: 296382439/917192256. Das 11h00 às 23h00. Não encerra. Preço médio: 15 euros.

Louvre Michaelense/No Andar de Cima
Rua António José D’Almeida, 8-10. Tel.: 938346886. Das 10h00 às 20h00. Não encerra (Louvre). Sexta, das 17h00 às 20h00 e domingos, das 9h00 às 13h00 (Andar de Cima).

VISITAR

Miolo – Galeria, livraria e editora
Rua Pedro Homem, 45. Tel.: 913193716. Web: facebook.com/miolo.cc. Das 10h00 às 18h00, sábado das 10h00 às 13h00. Encerra ao domingo.

Plantação de Ananás A. Arruda
Rua Dr. Augusto Arruda, Fajã de Baixo. Tel.: 296384483. Das 09h00 às 18h00. Não encerra. Entrada grátis.




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