Algarve: a serra do Caldeirão é para ser apreciada sem pressas

Na serra do Caldeirão, no Algarve, ainda há quem resista à desertificação e à globalização, fiel a um modo de vida em desuso, feito ao ritmo das estações e da natureza. Entre o litoral algarvio e o interior alentejano, este é um território de fronteira, que não é uma coisa nem outra, e por isso se transforma em muito mais, quando descoberto, saboreado e vivido sem pressas, como fazem os de cá.

O mapa diz-nos que estamos no Algarve, mas o mar há muito que ficou para trás, diluído na sucessão de curvas em que a estrada entretanto se transformou. De Loulé, a sede de concelho, até Barranco do Velho são pouco mais de 20 quilómetros, mas parecem muitos mais, à medida que a placidez do Barrocal começa a ser substituída pelos cerros e vales da serra. A aldeia continua a ser uma das principais portas para a serra do Caldeirão, território que se estende desde a ribeira de Odelouca, perto de Silves, até quase à fronteira com Espanha, servindo de divisória natural entre o litoral algarvio e as peneplanícies alentejanas.

O corrupio de outrora, quando era um dos pontos de paragem obrigatórios para quem se deslocava para o Algarve, pela Nacional 2, é uma recordação já longínqua em Barranco do Velho, mas os camionistas e caixeiros-viajantes do passado têm sido, nos últimos anos, substituídos por outro tipo de passantes, os caminheiros que percorrem a Via Algarviana, a grande rota pedestre que cruza o interior da região desde Alcoutim até Sagres, ao longo de 300 quilómetros. Inaugurada, em 2007, pela associação ambientalista Almagem, a Via Algarviana tem sido um dos grandes motores da economia local, trazendo um crescente número de visitantes às isoladas aldeias serranas.

Tal como antigamente, um dos pontos de paragem obrigatório, em Barranco do Velho, é o restaurante A Tia Bia, que também funciona como casa de alojamento local. A história deste sítio confunde-se com a da própria EN2, conforme explica o proprietário, Nuno Pires, que desistiu de uma carreira como chefe de cozinha, nos sofisticados restaurantes da Quinta do Lago, para regressar à terra natal. «Era um espaço que servia de apoio aos viajantes e hoje cumpre a mesma missão para com os caminhantes da Via Algarviana», afirma.

Nuno mudou-se para aqui com a mulher, Cátia Graça, natural de Loulé e a quem custou habituar-se ao sossego da serra, como a própria confessa. Em pouco mais de um ano já conseguiram, no entanto, a proeza de recuperar a fama do restaurante, sendo muitos os comensais que ali se deslocam de propósito, para provar pratos como as migas de bacalhau, as bochechas de porco preto no forno ou o estufado de javali.

À mesa está também João Ministro, um dos impulsionadores da Via Algarviana e desde 2013 organizador do Walking Festival Ameixial, já considerado um dos melhores da Europa e que transformou esta freguesia numa espécie de capital das caminhadas na serra do Caldeirão. A edição deste ano realiza-se no último fim de semana de abril e prolonga-se durante quatro dias, sendo esperados cerca de um milhar de visitantes para participar em mais de quarenta de caminhadas. «Os serrenhos não são algarvios nem alentejanos, são um povo como uma identidade própria e é isso que este festival pretende dar a conhecer aos visitantes, sem artifícios e com as pessoas de cá», sustenta João Ministro.

A cerca de 40 quilómetros de Loulé, a aldeia do Ameixial foi em tempos uma das mais populosas da serra

É hoje o perfeito exemplo de como o turismo de natureza pode ser uma das soluções para contrariar o isolamento e o abandono – não será a única, mas já é um começo. À volta da aldeia e na sequência do festival, foram criados três percursos pedestres, com diferentes distâncias e níveis de dificuldade, para dar a conhecer a riqueza paisagística, arqueológica e social desta região, que só com tempo se deixa descobrir.

De que outra forma, aliás, se poderia apreciar um palheiro como aquele que Otília Maria tem no seu quintal, em Corte de Ouro? Feitos de pedra, com um teto cónico de colmo, para resistir à humidade, fazem lembrar casas pré-históricas e, em todo o Algarve, apenas existem aqui. «Já vem do tempo dos meus avós», diz Otília, 78 anos, sem imaginar que talvez venha muito mais lá de trás.Afinal, esta é uma região habitada desde o alvor dos tempos, como o atestam monumentos megalíticos como as vizinhas antas do Beringel e da Pedra do Alagar ou a misteriosa escrita do Sudoeste, a primeira forma de escrita da península Ibérica, aqui criada há cerca de 2500 anos, neste vasto território que se estende entre o Algarve, o Alentejo e a Andaluzia.

Não chegam a uma centena, as estelas existentes, onde este alfabeto surge escrito em arco, de baixo para cima e da direita para esquerda, em rochas que se fixavam no solo – a maior parte delas encontradas no concelho de Loulé. «É uma escrita inspirada no alfabeto fenício e terá surgido ao mesmo tempo que a escrita etrusca e a grega, também elas com a mesma raiz», explica o arqueólogo Pedro Barros, ele próprio responsável pela descoberta de duas destas estelas. «Estava junto a um ribeiro e foi um senhor velhote, que vivia num monte, quem me falou da uma pedra com umas letras esquisitas. Foi uma sensação indescritível», recorda Bruno, que em abril será um dos guias no festival de caminhadas, este ano dedicado à Escrita do Sudoeste.

Um dos percursos pedestres mais bonitos da freguesia do Ameixial é o do Azinhal dos Mouros. Com cerca de 15 quilómetros de extensão, tem início em Azinhal dos Mouros, uma aldeia rodeada de sebes de figueira-da-índia, onde, no século XIII, D. Paio Peres Correia terá entrado no Algarve, vindo do Alentejo, para conquistar a região aos mouros – conforme mencionado na Crónica da reconquista do Algarve.

O cenário não será hoje muito diferente daquele que foi vislumbrado, há quase oito séculos, pelo cavaleiro. As pequenas casas, de arquitetura medieval árabe, lá continuam encavalitadas na encosta, com vista para o rio Vascão, que um pouco mais abaixo marca a fronteira com o Alentejo. Trata-se também do último rio selvagem do Algarve, o único que ainda corre livre, sem barragens no seu curso, ao longo de 70 quilómetros, até desaguar no Guadiana, perto de Alcoutim.

O passeio continua ao longo da margem, acompanhando em seguida a ribeira do Vascanito, antes de começar a subir serra acima, em direção ao lugar de Monte dos Vermelhos, de onde se pode apreciar uma panorâmica serrana de encher a vista. Apesar de pouco elevada – o ponto mais alto, no pico do Caldeirão, tem apenas 589 metros –, a serra do Caldeirão tem um relevo bastante acidentado, devido à densa rede hidrográfica, formada por pequenos ribeiros que, ao longo de milhares de anos, foi esculpindo a rocha.

De regresso ao Ameixial é tempo de reconfortar o estômago ao melhor estilo serrano, na Casa de Pasto Central do Ameixial. «Não sei se vocês gostam do que aqui tenho», avisa a dona Maria Antónia, proprietária e cozinheira da casa – função que partilha com algumas amigas –, enquanto vai pondo na mesa uns queijinhos de cabra frescos e uns nacos de pão, antes de servir um cozido de grão como já é raro encontrar. Como seria possível não gostar de algo assim?

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