Esta vila do Alto Alentejo tem história e gastronomia para oferecer. E até a NASA já a estudou…
«Ponham os olhos a pastar», incentiva José Manuel Calado, vidense de nascença, enquanto aponta para o imenso verde que se estende em frente. Os campos de cultivo prolongam-se além das casas brancas na zona nova da vila, alinhadas a régua e esquadro. Um cenário visível desde o miradouro da torre do relógio quinhentista, na parte mais antiga de Cabeço de Vide. Reza a lenda que, há muitos anos, foi neste monte que os sobreviventes de um ataque árabe se refugiaram para recuperar da batalha.
De violência, nem sinal nestes tempos. Apenas de uma paz que condiz tão bem com o espírito do Alto Alentejo. E nesta pacatez, quase é difícil imaginar aqui um cientista da NASA. Agora, sim, nem lenda nem mito. Em 2012, um estudo do Instituto Superior Técnico de Lisboa, com resultados surpreendentes sobre as águas termais de Cabeço de Vide, levou um investigador da NASA até à vila alentejana.
As condições hidrogeológicas e o incomum pH da água (11,5) fizeram que regressasse mais duas vezes para continuar a recolher amostras das termas e do solo, de forma a compará-las com as caraterísticas de Marte. «A geologia entre ambos é muito semelhante. E por isso está a estudar-se a possibilidade de estes ambientes serem propícios ao desenvolvimento de micro-organismos», explica Luís Rocha, diretor técnico das Termas da Sulfúrea, que fez parte do projeto.
Passaram quatro anos desde a primeira visita da NASA, mas a história ainda é contada com orgulho pela população, ou não fossem as termas um dos cartões-de-visita desta freguesia de Fronteira. Os romanos descobriram-nas muito antes, é certo.
Logo à entrada da vila, depois de o carro cruzar um túnel de árvores, surge o novo balneário das águas termais, construído em 2007 para substituir o primeiro, de 1855, cuja estrutura ainda se encontra por cima das antigas termas romanas. E se em Roma se aconselha a ser romano, em Cabeço de Vide o conselho é o de usufruir das águas termais até novembro. «Têm cerca de 3500 anos, são sulfúreas, hiperalcalinas e têm caraterísticas únicas no mundo. Funcionam como uma espécie de medicamento natural para problemas respiratórios, dermatológicos, reumáticos», conta Maria Antónia Nave, diretora clínica das termas.
É por ela que passa quem procura os benefícios prolongados daquelas águas, já que os tratamentos de 7 ou 14 dias requerem avaliação médica prévia. «Quem quiser usufruir das termas pelo bem-estar, também o pode fazer por um dia ou dois, embora sem resultados», explica. Clínicos, entenda-se.
Há 32 salas de tratamentos, piscinas com e sem água termal, banhos de hidromassagem, a jato e massagens. Nestas últimas utiliza-se um creme à base de água termal, mas já há outro produto a caminho com a mesma fórmula: um sabonete da água sulfúrea, preparado por Ana Paula Leitão, antiga técnica de farmácia. É na Casa das Artes e Ofícios que a vamos encontrar mais tarde, mas antes impera outra terapia: a da gastronomia alentejana.
Junto ao lago-barragem, que arrefece nos dias mais quentes do ano, está o Restaurante das Termas, concessionado à família Barradas. De decoração simples, mas com boa cozinha da terra, o espaço tem pratos como açorda, pernil de porco, ensopado de borrego ou língua de iscas, acompanhados por migas de couve-flor, de batata ou pão. Se apetecer algo típico para sobremesa é escolher a sopa dourada, que leva também pão, açúcar e ovo.
Energia recuperada, é tempo de partir para a parte antiga da vila. Em menos de cinco minutos de carro se chega à Casa das Artes e Ofícios, onde, nos melhores dias, a vista se prolonga até Espanha. Numa das salas fica o ateliê do autodidata Luís Veiga, que faz reproduções em miniatura de construções da vila, como a Igreja de Espírito Santo, a praça de touros e a torre do relógio.
Na oficina ao lado está Ana Paula Leitão, a responsável pelo novo sabonete das termas. E aqui é grande a variedade: há Sabonetes Água Mole de cravo, rosa e jasmim, limão e gerânio, figo, lavanda, e laranja e canela, todos em embalagens originais. Levam a assinatura da designer Daniela Gomes, tal como as caixas dos cremes, das águas de colónia, dos perfumes sólidos, das fragrâncias e da cera para a barba; todos preparados por Ana Paula de forma artesanal. Hoje, a antiga técnica farmacêutica faz aromas exclusivos para hotéis e para quem quiser ter o seu próprio aroma de assinatura. Criou também uma fragrância de Cabeço de Vide com rosmaninho, figo e flor de laranjeira, numa referência às árvores da Avenida da Libertação, eixo principal da vila.
É lá que acontece a próxima paragem. No número 42 fica o Café Antiquário e o nome não mente. Gramofones, telefones antigos, moinhos de café e relógios servem de decoração desde que a tradicional taberna abriu, em 1975. Os petiscos – sopa de beldroegas, de tomate, bacalhau e grão, omelete de batata – são um bom pretexto para a visita, mas também o é a «oficina de experimentações» do colecionador João Paulo Calado, nas traseiras do bar. Com mais de 80 anos, o antigo pedreiro dedica-se agora a consertar peças antigas e a criar gramofones. Sempre sem largar o cigarro, vai falando dos tempos duros no campo e da paixão pelos objetos antigos. Aponta para uma lata de Coca-Cola, para os puxadores de uma porta e um par de argolas de cortinado. Com estes três objetos faz uma das peças do gramofone. «Gosto de puxar pela cabeça e não desisto enquanto não sai bem», vinca.
A paixão pelo antigo é partilhada numa quinta não muito longe dali, uma das opções para ficar por perto das termas, para além do faustoso Solar Simas Cardoso, no centro da vila. Na Quinta do Cabeçote, Francisco Caldeira e a mulher, Maria Ana, mostram o gosto pelo restauro, desde que transformaram a antiga casa de um moleiro, em 2001. Mantiveram a antiga azenha que moía cereal e apostaram na simplicidade, no mobiliário de castanho velho e nas peças rústicas. E nos pormenores, como as chaves de quartos com badalos de chocalho.
Há cinco quartos na casa principal da propriedade, que ganha pontos por permitir aos hóspedes preparar as refeições numa cozinha equipada. Cada divisão tem o nome de um cereal, mas há ainda três pequenos apartamentos independentes com kitchenette, em frente à piscina.
Uma noite bem dormida e a manhã começa no salão Celeiro, com pão alentejano ao pequeno-almoço, cereais e compotas caseiras. Uma breve passagem pela Santa Casa da Misericórdia para ouvir o provedor Domingos Barradas recordar o raro mapa portulano ali encontrado na contracapa de um pergaminho, uma visita à antiga capela e é tempo de seguir caminho até aos produtos regionais do Espaço Turismo. A antiga taberna de família foi recuperada por Manuel Ribeiro e pela mulher, Laura Fagundes, o cérebro por detrás da seleção dos produtos que enchem as prateleiras da nova mercearia: pasta de açorda, mel regional, chás biológicos, licores, pasta de azeitonas e até açafrão de Cabeço de Vide.
E porque estamos no Alentejo, há sempre desculpa para uma boa refeição antes do regresso a casa. Na antiga estação de comboios desativada, por onde a automotora ligava Estremoz a Portalegre, há agora uma casa de turismo rural, a Estalagem D. Leonor e um restaurante, ao lado, que merece atenção. No Restaurante Leitão, os enchidos caseiros vêm da aldeia vizinha de Caia, onde os proprietários têm uma salsicharia. Mas há mais motivos para prolongar o almoço: as bochechas de porco preto no forno, a sopa de tomate com ovo escalfado e a de cação, a repetir. Houvesse comboio e logo se comprava bilhete para um regresso sem demora.
Evasões Recomenda
Comer
Restaurante das Termas. Estrada da Sulfúrea Tel.: 926251297. Das 09h00 às 15h00 e das 19h00 às 23h30. Não encerra. Preço médio: 12 euros
Café Antiquário. Av. da Libertação, 42. Tel.: 245634273. Das 10h00 às 02h00. Não encerra. Preço médio: 10 euros
Restaurante Leitão. Estação de Caminho de Ferro. Tel.: 961084748. Web: grupoleitao.com. Das 12h00 às 16h00 e das 19h00 às 23h00. Encerra à segunda. Preço médio: 15 euros.
Visitar
Museu Etnográfico. Numa antiga escola da primária nasceu o museu etnográfico de Cabeço de Vide. No interior, recorda-se as tradições e costumes da vila, como a ida às sortes (inspeção para o serviço militar), os trabalhos do campo e objetos associados, utensílios de cozinha antigos e o rancho folclórico, ainda existente.
Rua da Escola Velha, 2. Tel.: 963287487/ 968406971. Visitas por marcação
Termas da Sulfúrea. Estrada da Sulfúrea Tel.: 245634206. De 15 de março a 15 de novembro. Das 08h00 às 13h00 e das 16h00 às 19h00. Não encerra.
Atelier de Luís Veiga. Casa das Artes e Ofícios, Rua da Ordem de Avis. Tel.: 965868183. Necessário marcação para visitar
Comprar
Espaço Turismo. Rua Vasco da Gama, 2. Tel.: 245634177. Web: alentejomylove.pt
Água Mole. Casa das Artes e Ofícios, Rua da Ordem de Avis. Tel.: 966478454. Web: facebook.com/agua.mole.essencia
Ficar
Quinta do Cabeçote. GPS: 39.1258, -7.5819″. Tel.: 245634538. Web: quintadocabecote.com. Quartos duplos a partir de 60 euros (inclui pequeno-almoço)
Estalagem D. Leonor. Estação de Caminho de Ferro. Tel.: 961084748. Web: grupoleitao.com. Quartos duplos a partir de 15 euro